ANÁLISE
DAS TRÊS FALÁCIAS E SEUS NOVE EXEMPLOS NO CAPÍTULO NOMEAÇÃO CORRETA DO FILÓSOFO XUN
Introdução: o filósofo Xun e
sua crítica às falácias
A linguagem falaciosa pode gerar consequências que impactam negativamente a vida social? Se sim, como estabelecer uma linguagem correta, ou seja, que promova relações sociais mais harmoniosas? Essas duas questões podem ser vistas como pano de fundo do capítulo 22 da obra Xunzi荀子, ou Nomeação Correta, Zheng Ming 正名. Trata-se de uma obra homônima com o seu autor, o Xunzi 荀子, aportuguesado como filósofo Xun. Seu nome original é Xun Kuang 荀況 (310-211 Antes da Era Comum - AEC), logo, seu sobrenome é Xun, conforme a tradição cultural da língua chinesa do sobrenome aparecer primeiro. Zi 子 significa mestre, pensador destacado ou filósofo.
Nosso autor viveu no período da desintegração da dinastia Zhou 周 (1046-256), a última dinastia descentralizada da antiguidade chinesa. Presenciou o final do período dos “Estados Combatentes” (403-221 AEC), que, como o próprio nome diz, era um contexto de guerras, instabilidade social e desordem política. Essa situação se refletiu em grande medida em demandas para as próprias teorias de Xun, como também fomentou uma série de outros filósofos que buscavam responder da melhor maneira a tais desafios.
O filósofo Xun foi o terceiro maior defensor da Escola dos Eruditos, Rujia 儒家, depois de Mêncio (372-289 AEC) e de Confúcio (551-479 AEC) – que, devido ao seu impacto nessa tradição, fez estrangeiros a chamarem de “Confucionismo” (Costa, 2021). Xun é conhecido justamente pelas críticas que fez às outras correntes filosóficas existentes durante sua vida. Destas, destacamos aqui os Moístas (Mojia 墨家), a Escola dos Nomes (Mingjia 名家) e a corrente Song-Yin Xuepai 宋尹學派 (Theobald, 2011).
No capítulo Nomeação Correta ele estabeleceu uma
crítica severa e direta a nove frases ou proposições dos seus oponentes
intelectuais. Por sua vez, cada frase foi classificada em pelo menos uma de
três falácias, ou seja, em tipos de discursos enganosos ou falsos. Para ele, mais
do que apenas discursos contraditórios, falácias tem impactos sociais que não
devem ser subestimados. O presente texto tem o objetivo de analisar a crítica
do filósofo Xun a essas três falácias e seus nove exemplos. Após uma
contextualização histórica-filosófica do problema que buscamos resolver, vamos
analisar as posições filosóficas presentes nos argumentos criticados e os
respectivos contra-argumentos de Xun.
O
contexto geral da teoria da Nomeação Correta (Zheng Ming)
Uma busca pelo website Chinese Text Project (Sturgeon, 2006), mostra que o termo Zheng Ming 正名, nomeação correta ou retificação dos nomes, é encontrado já no Clássico dos Ritos, capítulo Leis do sacrifício, Ji Fa 祭法, trecho 8 (Liji, 2006). Nessa referência, afirma-se que Huang Di 黄帝, considerado pela cultura popular e tradicional como o primeiro Imperador da Antiguidade, “foi quem nomeou corretamente a tudo, mostrando assim às pessoas como aproveitar suas qualidades”. Confúcio (2012, p. 389), no trecho 13.3 dos Analectos, reafirmou isso ao dizer que a primeira coisa a fazer em um governo são as nomeações corretas, caso contrário: “[...] se os nomes não estão corretos, o falar não é fluente; se o falar não é fluente, os atos não se completam [...]”.
O que fazer caso essa desordem na linguagem e nos atos ocorra? Realizar nomeações corretas implementadas por pessoas virtuosas, Educadas (Junzi 君子), que, além de se comunicar bem, também suas ações são coerentes com o que dizem, conforme os trechos 12.10, 12.11 e 13.3 dos Analectos (Confúcio, 2012). Contudo, o projeto confuciano não se realizou até a época do filósofo Xun. Ao contrário, discursos perversos ganharam força, sendo que “não há nenhum deles que não possam ser classificados entre as três falácias [San huo 三惑]” (Xunzi, 2006, 22.11, nossa tradução). Já que os Educados não estavam mais no poder – logo, não tinham posição política suficiente para conter tais discursos maléficos –, o filósofo Xun defendeu a necessidade de realizar argumentações e explicações (Bian Shuo 辨說) contra as falácias.
É essa defesa e uso da argumentação e o ataque ás falácias que tornou a sua teoria da nomeação correta tão influente na história da filosofia chinesa. Mas não apenas isso. Curiosamente, para defender o Caminho dos Reis Sábios, o Dao 道 confuciano, ele se nutriu do que havia de melhor no mundo intelectual à sua volta, em especial, do método argumentativo da Escola dos Nomes e dos moístas, sendo um reflexo da diversidade intelectual do seu tempo. No entanto, criticou as teses dessas escolas filosóficas.
Da Escola dos Nomes, o filósofo Gongsun Long 公孫龍 (Gongsun, s. d.) apresenta dois pontos que devem
ser considerados. O primeiro é que Gongsun defendeu uma perspectiva que leva
leitores, como nós, a entender que havia uma realidade intrínseca aos nomes, ou
seja, há uma correlação natural entre um nome e uma realidade. Segundo, esse
autor estava preocupado com as consequências epistemológicas dessa correlação
nome-realidade, ou seja, de como estabelecer distinções adequadas que nos possibilitam
conhecer (zhi 知) objetos (shi
实 / 實) do mundo de forma mais segura
(Lai, 2009, p. 147). Dos moístas, segundo Nivison (1999, p.
798):
“[...] foi
notado que o ‘Zheng ming’ é a adaptação confucianamente orientada do Xunzi ao
esquema e aos temas dos ‘Cânones’ Moístas, [...] através da [1] primeira, [3] terceira
e [4] quarta das ‘disciplinas’ Moístas: [1] Discurso - saber conectar nomes com
objetos. Aqui, Xunzi parece estar reagindo à observação de Zhuangzi no
[capítulo] ‘Qi wu lun’ [Conversa sobre a igualdade das coisas] de que ‘as
coisas são assim porque são chamadas assim’ - a descoberta assustadora de que
não há usos de ‘nomes’ que sejam apenas naturalmente corretos, um fato que
Xunzi admite: ‘Os nomes não têm adequação intrínseca’. Haverá intolerável
confusão, a menos que os nomes sejam padronizados. [3] Ciências - conhecer
objetos. [Relaciona-se ao] problema do Xunzi de: ‘distinguir entre coisas que
são iguais e coisas que são diferentes’. [4] Argumentação - conhecer nomes. [Relaciona-se
ao] problema do Xunzi de: atribuir nomes de acordo com ‘semelhança’ e
‘diferença’ e garantir que os oponentes não confundam as coisas, como eles
querem fazer e farão”.
Curiosamente, a segunda
das quatro disciplinas moístas, a ética (Graham, 1989, p. 139), que ainda
estava faltando, é tratada como a solução para lidar com as falácias
identificadas pelo filósofo Xun. Por isso mesmo, a questão ética é o pano de
fundo do capítulo. Comento isso para informar que o objetivo final do nosso
filósofo vai além de mostrar erros de linguagem ou inconsistências lógicas. Ele
pretende dar conta da meta confuciana de haver uma coerência entre linguagem e
ação para reordenar a sociedade. Vejamos a seguir o ataque que ele fez às
falácias que identificou nos seus opositores.
Tradução do trecho 10, capítulo
22 (Zheng Ming, Nomeação Correta), da
obra Xunzi
“[Afirmações como] ‘ser humilhado não é vergonhoso’, ‘o sábio não ama a si mesmo’ e ‘matar ladrões não é matar pessoas’, [são exemplos de] usos confusos [huo 惑] dos nomes que levam a desordenar a linguagem. Se alguém verificar as ações derivadas dessas expressões, observará o que acontece quando elas são executadas, então poderá contê-las.
‘Montanhas e abismos estão no mesmo nível’, ‘os desejos derivados das emoções são poucos’, ‘[Carnes de] animais de criação não são [mais] saborosas’, [e] ‘grandes sinos não são [mais] divertidos’, estes são exemplos de usos confusos de objetos da realidade que levam a desordenar a linguagem. Se alguém verificar a razão para [diferenciar] o igual e o diferente [nessas expressões], e observar a coerência própria delas, então poderá contê-los.
‘[A flecha] não encontrou a pilastra’, ‘ter ‘bois e cavalos’ não é ter cavalos’, estes são exemplos de usos confusos de nomes que causam desordem na realidade. Se alguém verificar os nomes das convenções sociais, através do que lhes é aceito, contrastando com o que rejeitam, então poderá contê-los!”.
(Xunzi, 2006; tradução nossa, amparada em: Valenzuela Alonso, 2019; Hutton [Xunzi, 2014]; Zhang Jue [Xunzi, 1999]; Knoblock, 1988; Mei, 1951; Duyvendak, 1924.)
Breve
análise das três falácias do trecho traduzido
Cada um dos parágrafos do trecho 22.10 do Xunzi apresenta um tipo de falácia, que se relacionam com as disciplinas moístas explicadas anteriormente. É estabelecida uma relação causal entre nomes (ming 名) e objetos da realidade (shi 实 / 實). Mostra-se brevemente o impacto, as consequências, de cada uma dessas relações causais. Por fim, ele propõe uma solução para conter cada uma dessas falácias. Julguei necessário atribuir um nome para cada uma das falácias, bem como em colocar em proposições separadas, de forma que facilite metodologicamente a análise. Vejam:
1. Falácia ilocucionária, relacionada a disciplina dos Discursos dos moístas:
- usos de nomes
confusos (P) que confundem os nomes (Q), logo, P implica Q;
- Q implica ações
sociais destrutivas (R);
- o antídoto para R é a proibição política dessas proposições por meio de normas da linguagem.
2. Falácia da distorção da realidade, relacionada a disciplina das Ciências moístas:
- expressões confusas sobre
objetos da realidade (X) que desordenam a linguagem (Y), logo, X implica Y;
- Y implica obscurecer
a realização de distinções e semelhanças (Z);
- o antídoto para Z é checar a coerência interna da proposição e a distinção ou semelhança com a realidade.
3. Falácia da distração, relacionada a disciplina dos Argumentos dos moístas:
- usos confusos de
nomes (A) que causam desordem na realidade (B);
- B implica em confusão
dos padrões sociais estabelecidos e a consequente distração do interlocutor (CeD);
- o antídoto para CeD é verificar as sentenças com o que é aceito consensualmente na sociedade.
No quadro abaixo
busquei sintetizar as informações de forma visual:
Fonte: elaborado pelo autor em 14/09/2021.
Pela separação das proposições e pela visualização do quadro é possível notar que se trata, antes de tudo, de um problema de linguagem. Mais precisamente, trata-se da falta de clareza e exatidão, e até de uso antiético da linguagem. A primeira delas, a falácia ilocucionária, mostra que há ações mesmo dentro dos limites da linguagem e da comunicação. Ou seja, falas podem ser, em si mesmas, ações ou incitar ações – adiantando parcialmente as ideias de Austin (1990) sobre atos de fala, especialmente os atos ilocucionários. Para Xun, se forem falácias, tais atos serão socialmente danosos.
A relação com a
referência aos objetos da realidade é estabelecida nas duas falácias seguintes.
A falácia da distorção da realidade
começa com uma linguagem que busca distorcer a nossa percepção dos dados dos
sentidos para confundir e obscurecer a nossa linguagem. Já a falácia da distração vai na direção
contrária, confundindo os discursos para embaçar a nossa visão da realidade, e,
enfim, gerar uma distração na percepção do mundo no interlocutor. Todas as três
falácias visam como objetivo final causar algum tipo de confusão que acabe por
beneficiar os autores das falácias. Essas ações egoístas claramente prejudicam
a curto ou longo prazo a comunidade em que se convive. No próximo tópico vamos
analisar os exemplos históricos de proposições da China antiga que foram criticados
pelo filósofo Xun no trecho traduzido.
Breve
análise dos nove exemplos de falácias
A frase (1) “ser humilhado não é vergonhoso” é
atribuída ao filósofo Song Xing 宋銒,
autor da obra Sòngzi 宋子,
e que tinha sua própria corrente de pensamento (Theobald, 2011). Essa obra não
sobreviveu aos desafios da história, porém, o trecho citado pode ser encontrado
na obra Zhuangzi, cap. 33 (Tian Xia 天下, Tudo sob o Céu), trecho 3 (Wang et al.,
1999, p. 593). O ponto central atacado é que, sofrer humilhação necessariamente
implica sim uma situação embaraçosa, socialmente vergonhosa, caso contrário,
não seria humilhação. O filósofo Xun está questionando o fato de que, se alguém
diz que não há vergonha em ser humilhado, ele não irá corrigir seus erros. Em
outras palavras, dizer que “ser humilhado
não é vergonhoso” implica em continuar a cometer os erros e não se importar
com tentativas externas de correção. Contudo, humilhações são, justamente,
correções sociais, logo, servem para gerar vergonha no humilhado, obrigando-o a
mudar ou se adequar, numa análise da dinâmica social.
(2) “O sábio não ama a si mesmo” é uma versão
resumida de uma ideia do Mozi 墨子
(2006), fundador do moísmo, presente no capítulo Daqu 大取, Grande Seleção, parte 11. Há uma
obra, o Mozi Xiangu 墨子閒詁
(Comentários ao filósofo Mo), publicado por Sun Yi-Rang (2006) em 1893, que
comenta que a obra Xunzi está se
referindo especificamente aos trechos 8, 9, e 10 do referido capítulo do Mozi
(2006). Selecionamos o que se destaca nesses trechos, amparados livremente na
tradução inglesa de Johnston (2009, p. 586-589, que enumerou a mesma passagem
como 44.8): “Mozi, 11.9: O sábio teme a
doença e a decadência, mas não teme o perigo e a dificuldade. Ele mantém a
integridade de seu corpo e a determinação de seu coração. Ele deseja o
benefício do povo, ele não desgosta do amor do povo; Mozi, 11,10: O sábio não
considera sua própria morada [...]. Xun está questionando a ética
consequencialista dos moístas. Nesses trechos, os moístas defendem que o sábio
(Sheng ren 聖人),
já que ama a todos (P), deveria se sacrificar, se for preciso (Q). Assim, essa
é uma falácia ilocucionária por afirmar que, se P, então Q, mas não havendo
nada que levaria a tal conclusão, o que a faz soar falsa. Além disso, Q é uma
ação social destrutiva, tanto para o sacrificante quanto para a sociedade que
vai perder um sábio.
Já a famosa sentença (3)
“matar ladrões não é matar pessoas”
aparece nos livros moístas Xiaoqu 小取,
Pequena Seleção, trecho 11.5 (Mozi, 2006; Johnston, 2009, p. 627). Para Xunzi
se trata de uma falácia ilocucionária porque, através de uma confusão da
linguagem, leva a ações comunicativas violentas contra outras pessoas. No caso,
leva as pessoas X a uma narrativa de desumanização de outras pessoas Y, para X
legitimamente poderem assassinar Y. Uma versão brasileira atual desse tipo de
falácia são as sentenças como “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos
para humanos direitos”, expressos pela atual direita cristã conservadora,
atualmente no poder. Falas que, além de serem em si violentas, após
conquistarem a opinião pública, geram ações físicas violentas.
Passemos aos exemplos
das falácias da distorção da realidade. (4) “Montanhas e abismos [estão] no mesmo nível” é uma proposição atribuída
ao filósofo Huishi 惠施.
Trata-se do mais famoso representante da Escola dos Nomes, pelo menos entre nós,
já que ele aparece em alguns trechos do Zhuangzi dialogando com esse autor
daoísta, que por sua vez é razoavelmente conhecido no Brasil. Esse trecho
sobreviveu no livro Hanshi waizhuan 韓詩外傳
(Han, 2006), capítulo 3, parte 32, e parcialmente diferente no capítulo 33 do
Zhuangzi (Wang et al., 1999, p. 604-605). Xun entende que Hui Shi aqui busca
confundir uma distinção facilmente identificável por nossos sentidos naturais.
Assim, confunde a realidade, e consequentemente, dificulta ter parâmetros para
conhecermos, e, sem saber que sabemos, inviabiliza a própria linguagem.
(5) “Os desejos derivados das emoções são poucos”
é uma ideia atribuída novamente ao filósofo Song Xing, também presente no
Zhuangzi, capítulo 33, trecho 3 (Wang et al., 1999, p. 595). Xun vê uma falácia
aqui pelo fato de que é muito fácil de observar que os seres humanos, na
verdade, apresentam muitos desejos, e esses desejos nascem de emoções naturais (biológicas).
Na verdade, a observação do comportamento mostra que os desejos humanos são
muitos, logo, dizer o contrário distorce nossas referências da realidade, nos
impedindo de estabelecer uma linguagem correta.
Os dois próximos
exemplos podem ser vistos como apontando para um mesmo tipo de problema. (6) “[Carnes de] animais de criação não são [mais]
saborosas” é atribuída ao filósofo Song Xing. Já a sentença (7) “grandes sinos não são [mais] divertidos”,
conforme Valenzuela Alonso (2019), talvez seja uma menção a ideias de Mozi, e
ambas reaparecem como alvo de críticas no capítulo 18 no Xunzi. O que Xun está criticando aqui, em ambos os dois casos, é a
possibilidade de embaçar as distinções dos nossos sentidos (paladar e audição).
Se a falácia ter sucesso em distorcer a percepção da realidade do interlocutor,
este terá problemas em estabelecer distinções, logo, terá problemas em reconhecer
as diferenças dos objetos da realidade (shi) com clareza. Esse é o tipo de
confusão que um agente político mal-intencionado quer causar. Por isso, assim como nos outros casos, deve-se sempre
averiguar a coerência interna na sentença em relação a ela mesma (a proposição
já supõe que há sinos pequenos, já que há os grandes, assim, há diferenças
devido ao tamanho, desmentindo ela mesma). Também a própria coerência entre o
nome e realidade de ser averiguado empiricamente, daí o motivo de Nivison
(1999) conectar com a noção de “ciência” moísta. E este é um exemplo explícito
de quando o filósofo Xun usa as armas intelectuais dos seus oponentes para
criticá-los.
(8) “[A flecha] não encontrou a pilastra”:
provavelmente faz menção a ideia que julga ser confusa no Mozi (2006), capítulo
10, trecho 51: “O parar: Não parando quando
não há duração corresponde a ‘boi não é cavalo’ e é como ‘uma flecha passando
por um pilar’. Não parar quando há duração corresponde a ‘cavalo não é cavalo’
e é como ‘um homem passando por uma ponte” (Johnston, 2009. p. 416-417).
Trata-se, no entanto, de um trecho confuso (Hutton, 2014), talvez fruto de
erros de copistas (Valenzuela Alonso, 2019). O que talvez o filósofo Xun vê
como falácia é o fato de que não é possível uma flecha ultrapassar um pilar, já
que o pilar seria uma barreira física, vendo aqui uma clara confusão na
metáfora em relação à linguagem socialmente estabelecida.
No último exemplo de
falácia, (9a) “ter bois e cavalos não é
ter cavalos”, primeiro, trata-se de uma sentença do Mozi (2006), livro 10,
trecho 168 (ver Johnston, 2009, p. 552-553). Mas é amplamente comentado que é
também uma crítica a frase de Gongsun Long (9b) “cavalo branco não é cavalo” (cf.
Valenzuela Alonso, 2019). O filósofo Xun claramente vê um problema nessas
distinções: percebe uma tentativa de diferenciar objetos (shi) que são
convencionalmente vistos como sendo de uma mesma grande categoria (cavalos,
independentemente da cor, são, antes de tudo, cavalos). Com essa tentativa,
visa confundir as convenções sociais da linguagem (como a acordo de que cavalo
branco é, sim, cavalo), e, assim, o agente que usa a falácia pode usá-las para adquirir
vantagens pessoais em detrimento do bem comum.
Referências
Matheus
Oliva da Costa é pós-doutorando em Filosofia na USP e professor de Filosofia da
UERR. É membro da Associação Latino Americana de Filosofia Intercultural - ALAFI.
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Chinese-English edition of the Zhuangzi. Changsha: Hunan People’s Publishing House and Foreign
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Caro Matheus,
ResponderExcluirparabéns pelo seu texto, que traz uma análise única em nosso panorama acadêmico sobre a obra de Xunzi. Uma coisa me chamou atenção: em termos de uma estratégia epistemológica para análise de um outro pensar não-ocidental, a metodologia da lógica formal aristotélica [silogismo, falácia, etc] é um meio adequado de explicação/demonstração? Haveria uma sistemática de representação da ideia via expedientes sínicos? saudações, André Bueno
Ei André!
ExcluirObrigado.
Começando pelo final: "Haveria uma sistemática de representação da ideia via expedientes sínicos?"
Sim, a Anne Cheng, a Karyn Lai, o Masayuki Sato ou o Valenzuela Alonso fizeram uma interpretação sinológica muito boa do referido capítulo, abordando a resposta xunziana aos desafios do seu contexto histórico, dentro dos limites das questões chinesas. O meu ponto é que percebi a necessidade de ir além dessa interpretação específica (historicista), pois não tenho como objetivo, nesse texto, produzir principalmente "história da filosofia (chinesa)", ainda que isso seja parte na minha fundamentação. Meu intuito principal é o diálogo filosófico, é investigar as proposições que o filósofo Xun está propondo aos leitores e leitoras, para além do contexto chinês.
Continuo abaixo.
"em termos de uma estratégia epistemológica para análise de um outro pensar não-ocidental, a metodologia da lógica formal aristotélica [silogismo, falácia, etc] é um meio adequado de explicação/demonstração?"
ExcluirResposta: Sua pergunta é profunda, e merece que eu desenvolva a resposta, vamos lá. (1) Na verdade, eu considero estar usando uma metodologia analítica contemporânea, e não exatamente aristotélica, ainda que eu admita a filiação da primeira com o segundo. Aliás, uma metodologia contemporânea usada também para investigar as proposições outros filósofos antigos, como Sexto Empírico ou Epicuro, filósofos um tanto quanto marginais desde o contexto helenístico, lembrando da origem indiana do pirronismo que o Sexto Empírico segue (e, sobre esse uso da minha parte, posso não ter alcançado esse objetivo, deixo os leitores julgarem).
(2) Estou experimentando um meio propriamente filosófico de análise de um texto que considero igualmente filosófico, no sentido de ser sistemático, com discurso elaborado, e questionador de pontos fundamentais do conhecimento humano. Reconheço que pode parecer pouco (ou nada) "sinológico", porém, minha estratégia é justamente articular o pensamento xunziano, internacionalmente reconhecido como um dos mais profundos da sua época, com todo um ferramental analítico e conceitual que existe na tradição analítica atual, tal como filósofos chineses e coreanos tem feito, como Chong Chae hyun, bem como filósofos e filósofas de todo o mundo (me refiro, por exemplo, ao Dao companion to the Philosophy of Xunzi). Nesse sentido, acredito ser adequado usar esse ferramental metodológico e conceitual analítico, tal como tenho observado no frutífero debate internacional sobre o Xunzi, especialmente desse capítulo 22 dele. Mas claro que há limites, e estou a disposição para conversar sobre isso e outros assuntos.
Por fim, tal como tenho mostrado em textos na Coluna ANPOF, minha preocupação é eminentemente brasileira, parte de minha realidade não-europeia e não-chinesa, mas sim, latino americana. Assim, defendo um movimento antropofágico andradiano de produção autoral em que eu bebo de fontes analíticas anglófonas, do conteúdo filosófico chinês, da sinologia brasileira e internacional.
Obrigado pela oportunidade de refletir sobre tais questões. Diálogos assim são raros. Abraços
=D
Excluireu que agradeço!
grande abraço
André
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