Matheus Oliva da Costa

ANÁLISE DAS TRÊS FALÁCIAS E SEUS NOVE EXEMPLOS NO CAPÍTULO NOMEAÇÃO CORRETA DO FILÓSOFO XUN

 

Introdução: o filósofo Xun e sua crítica às falácias

A linguagem falaciosa pode gerar consequências que impactam negativamente a vida social? Se sim, como estabelecer uma linguagem correta, ou seja, que promova relações sociais mais harmoniosas? Essas duas questões podem ser vistas como pano de fundo do capítulo 22 da obra Xunzi荀子, ou Nomeação Correta, Zheng Ming 正名. Trata-se de uma obra homônima com o seu autor, o Xunzi 荀子, aportuguesado como filósofo Xun. Seu nome original é Xun Kuang 荀況 (310-211 Antes da Era Comum - AEC), logo, seu sobrenome é Xun, conforme a tradição cultural da língua chinesa do sobrenome aparecer primeiro. Zi significa mestre, pensador destacado ou filósofo.

Nosso autor viveu no período da desintegração da dinastia Zhou (1046-256), a última dinastia descentralizada da antiguidade chinesa. Presenciou o final do período dos “Estados Combatentes” (403-221 AEC), que, como o próprio nome diz, era um contexto de guerras, instabilidade social e desordem política. Essa situação se refletiu em grande medida em demandas para as próprias teorias de Xun, como também fomentou uma série de outros filósofos que buscavam responder da melhor maneira a tais desafios.

O filósofo Xun foi o terceiro maior defensor da Escola dos Eruditos, Rujia 儒家, depois de Mêncio (372-289 AEC) e de Confúcio (551-479 AEC) – que, devido ao seu impacto nessa tradição, fez estrangeiros a chamarem de “Confucionismo” (Costa, 2021). Xun é conhecido justamente pelas críticas que fez às outras correntes filosóficas existentes durante sua vida. Destas, destacamos aqui os Moístas (Mojia 墨家), a Escola dos Nomes (Mingjia 名家) e a corrente Song-Yin Xuepai 宋尹學派 (Theobald, 2011).

No capítulo Nomeação Correta ele estabeleceu uma crítica severa e direta a nove frases ou proposições dos seus oponentes intelectuais. Por sua vez, cada frase foi classificada em pelo menos uma de três falácias, ou seja, em tipos de discursos enganosos ou falsos. Para ele, mais do que apenas discursos contraditórios, falácias tem impactos sociais que não devem ser subestimados. O presente texto tem o objetivo de analisar a crítica do filósofo Xun a essas três falácias e seus nove exemplos. Após uma contextualização histórica-filosófica do problema que buscamos resolver, vamos analisar as posições filosóficas presentes nos argumentos criticados e os respectivos contra-argumentos de Xun.

 

O contexto geral da teoria da Nomeação Correta (Zheng Ming)

Uma busca pelo website Chinese Text Project (Sturgeon, 2006), mostra que o termo Zheng Ming 正名, nomeação correta ou retificação dos nomes, é encontrado já no Clássico dos Ritos, capítulo Leis do sacrifício, Ji Fa 祭法, trecho 8 (Liji, 2006). Nessa referência, afirma-se que Huang Di 黄帝, considerado pela cultura popular e tradicional como o primeiro Imperador da Antiguidade, “foi quem nomeou corretamente a tudo, mostrando assim às pessoas como aproveitar suas qualidades”. Confúcio (2012, p. 389), no trecho 13.3 dos Analectos, reafirmou isso ao dizer que a primeira coisa a fazer em um governo são as nomeações corretas, caso contrário: “[...] se os nomes não estão corretos, o falar não é fluente; se o falar não é fluente, os atos não se completam [...]”.

O que fazer caso essa desordem na linguagem e nos atos ocorra? Realizar nomeações corretas implementadas por pessoas virtuosas, Educadas (Junzi 君子), que, além de se comunicar bem, também suas ações são coerentes com o que dizem, conforme os trechos 12.10, 12.11 e 13.3 dos Analectos (Confúcio, 2012). Contudo, o projeto confuciano não se realizou até a época do filósofo Xun. Ao contrário, discursos perversos ganharam força, sendo que “não há nenhum deles que não possam ser classificados entre as três falácias [San huo 三惑]” (Xunzi, 2006, 22.11, nossa tradução). Já que os Educados não estavam mais no poder – logo, não tinham posição política suficiente para conter tais discursos maléficos –, o filósofo Xun defendeu a necessidade de realizar argumentações e explicações (Bian Shuo 辨說) contra as falácias.

É essa defesa e uso da argumentação e o ataque ás falácias que tornou a sua teoria da nomeação correta tão influente na história da filosofia chinesa. Mas não apenas isso. Curiosamente, para defender o Caminho dos Reis Sábios, o Dao confuciano, ele se nutriu do que havia de melhor no mundo intelectual à sua volta, em especial, do método argumentativo da Escola dos Nomes e dos moístas, sendo um reflexo da diversidade intelectual do seu tempo. No entanto, criticou as teses dessas escolas filosóficas.

Da Escola dos Nomes, o filósofo Gongsun Long 公孫龍 (Gongsun, s. d.) apresenta dois pontos que devem ser considerados. O primeiro é que Gongsun defendeu uma perspectiva que leva leitores, como nós, a entender que havia uma realidade intrínseca aos nomes, ou seja, há uma correlação natural entre um nome e uma realidade. Segundo, esse autor estava preocupado com as consequências epistemológicas dessa correlação nome-realidade, ou seja, de como estabelecer distinções adequadas que nos possibilitam conhecer (zhi ) objetos (shi / ) do mundo de forma mais segura (Lai, 2009, p. 147). Dos moístas, segundo Nivison (1999, p. 798):

 

“[...] foi notado que o ‘Zheng ming’ é a adaptação confucianamente orientada do Xunzi ao esquema e aos temas dos ‘Cânones’ Moístas, [...] através da [1] primeira, [3] terceira e [4] quarta das ‘disciplinas’ Moístas: [1] Discurso - saber conectar nomes com objetos. Aqui, Xunzi parece estar reagindo à observação de Zhuangzi no [capítulo] ‘Qi wu lun’ [Conversa sobre a igualdade das coisas] de que ‘as coisas são assim porque são chamadas assim’ - a descoberta assustadora de que não há usos de ‘nomes’ que sejam apenas naturalmente corretos, um fato que Xunzi admite: ‘Os nomes não têm adequação intrínseca’. Haverá intolerável confusão, a menos que os nomes sejam padronizados. [3] Ciências - conhecer objetos. [Relaciona-se ao] problema do Xunzi de: ‘distinguir entre coisas que são iguais e coisas que são diferentes’. [4] Argumentação - conhecer nomes. [Relaciona-se ao] problema do Xunzi de: atribuir nomes de acordo com ‘semelhança’ e ‘diferença’ e garantir que os oponentes não confundam as coisas, como eles querem fazer e farão”.

 

Curiosamente, a segunda das quatro disciplinas moístas, a ética (Graham, 1989, p. 139), que ainda estava faltando, é tratada como a solução para lidar com as falácias identificadas pelo filósofo Xun. Por isso mesmo, a questão ética é o pano de fundo do capítulo. Comento isso para informar que o objetivo final do nosso filósofo vai além de mostrar erros de linguagem ou inconsistências lógicas. Ele pretende dar conta da meta confuciana de haver uma coerência entre linguagem e ação para reordenar a sociedade. Vejamos a seguir o ataque que ele fez às falácias que identificou nos seus opositores.

 

Tradução do trecho 10, capítulo 22 (Zheng Ming, Nomeação Correta), da obra Xunzi

[Afirmações como] ‘ser humilhado não é vergonhoso’, ‘o sábio não ama a si mesmo’ e ‘matar ladrões não é matar pessoas’, [são exemplos de] usos confusos [huo ] dos nomes que levam a desordenar a linguagem. Se alguém verificar as ações derivadas dessas expressões, observará o que acontece quando elas são executadas, então poderá contê-las.

‘Montanhas e abismos estão no mesmo nível’, ‘os desejos derivados das emoções são poucos’, ‘[Carnes de] animais de criação não são [mais] saborosas’, [e] ‘grandes sinos não são [mais] divertidos’, estes são exemplos de usos confusos de objetos da realidade que levam a desordenar a linguagem. Se alguém verificar a razão para [diferenciar] o igual e o diferente [nessas expressões], e observar a coerência própria delas, então poderá contê-los.

‘[A flecha] não encontrou a pilastra’, ‘ter ‘bois e cavalos’ não é ter cavalos’, estes são exemplos de usos confusos de nomes que causam desordem na realidade. Se alguém verificar os nomes das convenções sociais, através do que lhes é aceito, contrastando com o que rejeitam, então poderá contê-los!”.

(Xunzi, 2006; tradução nossa, amparada em: Valenzuela Alonso, 2019; Hutton [Xunzi, 2014]; Zhang Jue [Xunzi, 1999]; Knoblock, 1988; Mei, 1951; Duyvendak, 1924.)

 

Breve análise das três falácias do trecho traduzido

Cada um dos parágrafos do trecho 22.10 do Xunzi apresenta um tipo de falácia, que se relacionam com as disciplinas moístas explicadas anteriormente. É estabelecida uma relação causal entre nomes (ming ) e objetos da realidade (shi / ). Mostra-se brevemente o impacto, as consequências, de cada uma dessas relações causais. Por fim, ele propõe uma solução para conter cada uma dessas falácias. Julguei necessário atribuir um nome para cada uma das falácias, bem como em colocar em proposições separadas, de forma que facilite metodologicamente a análise. Vejam:

1. Falácia ilocucionária, relacionada a disciplina dos Discursos dos moístas:

- usos de nomes confusos (P) que confundem os nomes (Q), logo, P implica Q;

- Q implica ações sociais destrutivas (R);

- o antídoto para R é a proibição política dessas proposições por meio de normas da linguagem. 

2. Falácia da distorção da realidade, relacionada a disciplina das Ciências moístas:

- expressões confusas sobre objetos da realidade (X) que desordenam a linguagem (Y), logo, X implica Y;

- Y implica obscurecer a realização de distinções e semelhanças (Z);

- o antídoto para Z é checar a coerência interna da proposição e a distinção ou semelhança com a realidade.

3. Falácia da distração, relacionada a disciplina dos Argumentos dos moístas:

- usos confusos de nomes (A) que causam desordem na realidade (B);

- B implica em confusão dos padrões sociais estabelecidos e a consequente distração do interlocutor (CeD);

- o antídoto para CeD é verificar as sentenças com o que é aceito consensualmente na sociedade.

No quadro abaixo busquei sintetizar as informações de forma visual:

Fonte: elaborado pelo autor em 14/09/2021.

 

Pela separação das proposições e pela visualização do quadro é possível notar que se trata, antes de tudo, de um problema de linguagem. Mais precisamente, trata-se da falta de clareza e exatidão, e até de uso antiético da linguagem. A primeira delas, a falácia ilocucionária, mostra que há ações mesmo dentro dos limites da linguagem e da comunicação. Ou seja, falas podem ser, em si mesmas, ações ou incitar ações – adiantando parcialmente as ideias de Austin (1990) sobre atos de fala, especialmente os atos ilocucionários. Para Xun, se forem falácias, tais atos serão socialmente danosos.

A relação com a referência aos objetos da realidade é estabelecida nas duas falácias seguintes. A falácia da distorção da realidade começa com uma linguagem que busca distorcer a nossa percepção dos dados dos sentidos para confundir e obscurecer a nossa linguagem. Já a falácia da distração vai na direção contrária, confundindo os discursos para embaçar a nossa visão da realidade, e, enfim, gerar uma distração na percepção do mundo no interlocutor. Todas as três falácias visam como objetivo final causar algum tipo de confusão que acabe por beneficiar os autores das falácias. Essas ações egoístas claramente prejudicam a curto ou longo prazo a comunidade em que se convive. No próximo tópico vamos analisar os exemplos históricos de proposições da China antiga que foram criticados pelo filósofo Xun no trecho traduzido.

 

Breve análise dos nove exemplos de falácias

A frase (1) “ser humilhado não é vergonhoso” é atribuída ao filósofo Song Xing 宋銒, autor da obra Sòngzi 宋子, e que tinha sua própria corrente de pensamento (Theobald, 2011). Essa obra não sobreviveu aos desafios da história, porém, o trecho citado pode ser encontrado na obra Zhuangzi, cap. 33 (Tian Xia 天下, Tudo sob o Céu), trecho 3 (Wang et al., 1999, p. 593). O ponto central atacado é que, sofrer humilhação necessariamente implica sim uma situação embaraçosa, socialmente vergonhosa, caso contrário, não seria humilhação. O filósofo Xun está questionando o fato de que, se alguém diz que não há vergonha em ser humilhado, ele não irá corrigir seus erros. Em outras palavras, dizer que “ser humilhado não é vergonhoso” implica em continuar a cometer os erros e não se importar com tentativas externas de correção. Contudo, humilhações são, justamente, correções sociais, logo, servem para gerar vergonha no humilhado, obrigando-o a mudar ou se adequar, numa análise da dinâmica social.

 

(2) “O sábio não ama a si mesmo” é uma versão resumida de uma ideia do Mozi 墨子 (2006), fundador do moísmo, presente no capítulo Daqu 大取, Grande Seleção, parte 11. Há uma obra, o Mozi Xiangu 墨子閒詁 (Comentários ao filósofo Mo), publicado por Sun Yi-Rang (2006) em 1893, que comenta que a obra Xunzi está se referindo especificamente aos trechos 8, 9, e 10 do referido capítulo do Mozi (2006). Selecionamos o que se destaca nesses trechos, amparados livremente na tradução inglesa de Johnston (2009, p. 586-589, que enumerou a mesma passagem como 44.8): “Mozi, 11.9: O sábio teme a doença e a decadência, mas não teme o perigo e a dificuldade. Ele mantém a integridade de seu corpo e a determinação de seu coração. Ele deseja o benefício do povo, ele não desgosta do amor do povo; Mozi, 11,10: O sábio não considera sua própria morada [...]. Xun está questionando a ética consequencialista dos moístas. Nesses trechos, os moístas defendem que o sábio (Sheng ren 聖人), já que ama a todos (P), deveria se sacrificar, se for preciso (Q). Assim, essa é uma falácia ilocucionária por afirmar que, se P, então Q, mas não havendo nada que levaria a tal conclusão, o que a faz soar falsa. Além disso, Q é uma ação social destrutiva, tanto para o sacrificante quanto para a sociedade que vai perder um sábio.

 

Já a famosa sentença (3) “matar ladrões não é matar pessoas” aparece nos livros moístas Xiaoqu 小取, Pequena Seleção, trecho 11.5 (Mozi, 2006; Johnston, 2009, p. 627). Para Xunzi se trata de uma falácia ilocucionária porque, através de uma confusão da linguagem, leva a ações comunicativas violentas contra outras pessoas. No caso, leva as pessoas X a uma narrativa de desumanização de outras pessoas Y, para X legitimamente poderem assassinar Y. Uma versão brasileira atual desse tipo de falácia são as sentenças como “bandido bom é bandido morto” e “direitos humanos para humanos direitos”, expressos pela atual direita cristã conservadora, atualmente no poder. Falas que, além de serem em si violentas, após conquistarem a opinião pública, geram ações físicas violentas.

 

Passemos aos exemplos das falácias da distorção da realidade. (4) “Montanhas e abismos [estão] no mesmo nível” é uma proposição atribuída ao filósofo Huishi 惠施. Trata-se do mais famoso representante da Escola dos Nomes, pelo menos entre nós, já que ele aparece em alguns trechos do Zhuangzi dialogando com esse autor daoísta, que por sua vez é razoavelmente conhecido no Brasil. Esse trecho sobreviveu no livro Hanshi waizhuan 韓詩外傳 (Han, 2006), capítulo 3, parte 32, e parcialmente diferente no capítulo 33 do Zhuangzi (Wang et al., 1999, p. 604-605). Xun entende que Hui Shi aqui busca confundir uma distinção facilmente identificável por nossos sentidos naturais. Assim, confunde a realidade, e consequentemente, dificulta ter parâmetros para conhecermos, e, sem saber que sabemos, inviabiliza a própria linguagem.

 

(5) “Os desejos derivados das emoções são poucos” é uma ideia atribuída novamente ao filósofo Song Xing, também presente no Zhuangzi, capítulo 33, trecho 3 (Wang et al., 1999, p. 595). Xun vê uma falácia aqui pelo fato de que é muito fácil de observar que os seres humanos, na verdade, apresentam muitos desejos, e esses desejos nascem de emoções naturais (biológicas). Na verdade, a observação do comportamento mostra que os desejos humanos são muitos, logo, dizer o contrário distorce nossas referências da realidade, nos impedindo de estabelecer uma linguagem correta.

 

Os dois próximos exemplos podem ser vistos como apontando para um mesmo tipo de problema. (6) “[Carnes de] animais de criação não são [mais] saborosas” é atribuída ao filósofo Song Xing. Já a sentença (7) “grandes sinos não são [mais] divertidos”, conforme Valenzuela Alonso (2019), talvez seja uma menção a ideias de Mozi, e ambas reaparecem como alvo de críticas no capítulo 18 no Xunzi. O que Xun está criticando aqui, em ambos os dois casos, é a possibilidade de embaçar as distinções dos nossos sentidos (paladar e audição). Se a falácia ter sucesso em distorcer a percepção da realidade do interlocutor, este terá problemas em estabelecer distinções, logo, terá problemas em reconhecer as diferenças dos objetos da realidade (shi) com clareza. Esse é o tipo de confusão que um agente político mal-intencionado quer causar. Por isso, assim como nos outros casos, deve-se sempre averiguar a coerência interna na sentença em relação a ela mesma (a proposição já supõe que há sinos pequenos, já que há os grandes, assim, há diferenças devido ao tamanho, desmentindo ela mesma). Também a própria coerência entre o nome e realidade de ser averiguado empiricamente, daí o motivo de Nivison (1999) conectar com a noção de “ciência” moísta. E este é um exemplo explícito de quando o filósofo Xun usa as armas intelectuais dos seus oponentes para criticá-los.

 

(8) “[A flecha] não encontrou a pilastra”: provavelmente faz menção a ideia que julga ser confusa no Mozi (2006), capítulo 10, trecho 51: “O parar: Não parando quando não há duração corresponde a ‘boi não é cavalo’ e é como ‘uma flecha passando por um pilar’. Não parar quando há duração corresponde a ‘cavalo não é cavalo’ e é como ‘um homem passando por uma ponte” (Johnston, 2009. p. 416-417). Trata-se, no entanto, de um trecho confuso (Hutton, 2014), talvez fruto de erros de copistas (Valenzuela Alonso, 2019). O que talvez o filósofo Xun vê como falácia é o fato de que não é possível uma flecha ultrapassar um pilar, já que o pilar seria uma barreira física, vendo aqui uma clara confusão na metáfora em relação à linguagem socialmente estabelecida.

 

No último exemplo de falácia, (9a) “ter bois e cavalos não é ter cavalos”, primeiro, trata-se de uma sentença do Mozi (2006), livro 10, trecho 168 (ver Johnston, 2009, p. 552-553). Mas é amplamente comentado que é também uma crítica a frase de Gongsun Long (9b) “cavalo branco não é cavalo” (cf. Valenzuela Alonso, 2019). O filósofo Xun claramente vê um problema nessas distinções: percebe uma tentativa de diferenciar objetos (shi) que são convencionalmente vistos como sendo de uma mesma grande categoria (cavalos, independentemente da cor, são, antes de tudo, cavalos). Com essa tentativa, visa confundir as convenções sociais da linguagem (como a acordo de que cavalo branco é, sim, cavalo), e, assim, o agente que usa a falácia pode usá-las para adquirir vantagens pessoais em detrimento do bem comum.

 

Referências

Matheus Oliva da Costa é pós-doutorando em Filosofia na USP e professor de Filosofia da UERR. É membro da Associação Latino Americana de Filosofia Intercultural - ALAFI.

 

AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre, Artes médicas, 1990.

CONFÚCIO. Os Analectos. Tradução, comentários e notas de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora UNESP, 2012.

COSTA, M. O. Confucionismo: uma abordagem intercultural. Curitiba: Intersaberes, 2021.

DUYVENDAK, Jan Julius Lodewijk. Hsün-tzŭ on the Rectification of Names. T'oung Pao, p. 221-254, 1924.

GONGSUN Long 公孫龍. Gongsun Long. Trad. Nuño Valenzuela. Online, [s.d.]. Disponível em <https://gongsunlongzi.wordpress.com/traduccion-estilizada-de-gongsunlong-a-lengua-espanola-por-nuno-valenzuela-alonso/>. Acesso em 13/09/2021.

GRAHAM, Angus C. Disputers of the Tao: Philosophical Argument in Ancient China. Chicago and La Salle: Open Court, 1989.

HAN, Ying 韓嬰. Hanshi waizhuan 韓詩外傳.  In: STURGEON, Donald. Chinese Text Project. 2006. Disponível em <https://ctext.org/han-shi-wai-zhuan/juan-san>. Acesso em: 13/09/2021.

JOHNSTON, Ian. The Mozi: A complete translation. The Chinese University of Hong Kong Press, 2009.

KNOBLOCK, John (ed.). Xunzi: A translation and study of the complete works. Stanford: Stanford University Press, 1988.

LAI, Karyn L. Introdução à filosofia chinesa: Confucionismo, Moismo, Daoismo e Legalismo. São Paulo: Madras, 2009.

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MEI, Yi Pao. Hsün-tzŭ on Terminology. Philosophy East and West, p. 51-66, 1951.

MOZI 墨子. In: STURGEON, Donald. Chinese Text Project. 2006. Disponível em <https://ctext.org/mozi>. Acesso em: 13/09/2021.

NIVISON, David Shepherd. The Classical Philosophical Writings. In: LOEWE, Michael; SHAUGHNESSY, Edward L. (Eds.). The Cambridge history of ancient China: From the origins of civilization to 221 BC. Cambridge University Press, p. 745-812, 1999.

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6 comentários:

  1. Caro Matheus,
    parabéns pelo seu texto, que traz uma análise única em nosso panorama acadêmico sobre a obra de Xunzi. Uma coisa me chamou atenção: em termos de uma estratégia epistemológica para análise de um outro pensar não-ocidental, a metodologia da lógica formal aristotélica [silogismo, falácia, etc] é um meio adequado de explicação/demonstração? Haveria uma sistemática de representação da ideia via expedientes sínicos? saudações, André Bueno

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    1. Ei André!
      Obrigado.

      Começando pelo final: "Haveria uma sistemática de representação da ideia via expedientes sínicos?"
      Sim, a Anne Cheng, a Karyn Lai, o Masayuki Sato ou o Valenzuela Alonso fizeram uma interpretação sinológica muito boa do referido capítulo, abordando a resposta xunziana aos desafios do seu contexto histórico, dentro dos limites das questões chinesas. O meu ponto é que percebi a necessidade de ir além dessa interpretação específica (historicista), pois não tenho como objetivo, nesse texto, produzir principalmente "história da filosofia (chinesa)", ainda que isso seja parte na minha fundamentação. Meu intuito principal é o diálogo filosófico, é investigar as proposições que o filósofo Xun está propondo aos leitores e leitoras, para além do contexto chinês.
      Continuo abaixo.

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    2. "em termos de uma estratégia epistemológica para análise de um outro pensar não-ocidental, a metodologia da lógica formal aristotélica [silogismo, falácia, etc] é um meio adequado de explicação/demonstração?"

      Resposta: Sua pergunta é profunda, e merece que eu desenvolva a resposta, vamos lá. (1) Na verdade, eu considero estar usando uma metodologia analítica contemporânea, e não exatamente aristotélica, ainda que eu admita a filiação da primeira com o segundo. Aliás, uma metodologia contemporânea usada também para investigar as proposições outros filósofos antigos, como Sexto Empírico ou Epicuro, filósofos um tanto quanto marginais desde o contexto helenístico, lembrando da origem indiana do pirronismo que o Sexto Empírico segue (e, sobre esse uso da minha parte, posso não ter alcançado esse objetivo, deixo os leitores julgarem).
      (2) Estou experimentando um meio propriamente filosófico de análise de um texto que considero igualmente filosófico, no sentido de ser sistemático, com discurso elaborado, e questionador de pontos fundamentais do conhecimento humano. Reconheço que pode parecer pouco (ou nada) "sinológico", porém, minha estratégia é justamente articular o pensamento xunziano, internacionalmente reconhecido como um dos mais profundos da sua época, com todo um ferramental analítico e conceitual que existe na tradição analítica atual, tal como filósofos chineses e coreanos tem feito, como Chong Chae hyun, bem como filósofos e filósofas de todo o mundo (me refiro, por exemplo, ao Dao companion to the Philosophy of Xunzi). Nesse sentido, acredito ser adequado usar esse ferramental metodológico e conceitual analítico, tal como tenho observado no frutífero debate internacional sobre o Xunzi, especialmente desse capítulo 22 dele. Mas claro que há limites, e estou a disposição para conversar sobre isso e outros assuntos.
      Por fim, tal como tenho mostrado em textos na Coluna ANPOF, minha preocupação é eminentemente brasileira, parte de minha realidade não-europeia e não-chinesa, mas sim, latino americana. Assim, defendo um movimento antropofágico andradiano de produção autoral em que eu bebo de fontes analíticas anglófonas, do conteúdo filosófico chinês, da sinologia brasileira e internacional.
      Obrigado pela oportunidade de refletir sobre tais questões. Diálogos assim são raros. Abraços

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    3. =D
      eu que agradeço!
      grande abraço
      André

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