BREVES APONTAMENTOS SOBRE AS NATUREZAS CÍCLICA E LINEAR DE TEMPO NA CULTURA HINDU
Pesquisas e estudos acadêmicos sobre a natureza do tempo segundo as tradições hindus recorrentemente destacam dois ritmos diferentes entre si, o cíclico e o linear. Por tempo cíclico entende-se uma eterna repetição do tempo em ciclos periódicos, sem início nem fim, de modo que cada ciclo sempre retorne com regularidade e forma imutáveis, reproduzindo em todos os seus detalhes acontecimentais fatos ocorridos em ciclos anteriores, garantindo sempre a mesma fisiologia factual em todos os períodos previstos.
Por tempo linear compreende-se uma sequência acontecimental, com um início apenas e somente um fim dos tempos, na qual cada evento é único e jamais repetível em quaisquer de suas características, de modo que a dinâmica factual do tempo sempre seja inédita, negando, assim, a reversibilidade do tempo, constituindo uma linha contínua de permanente e omnipresente mudança de todos os aspectos viventes, constantemente condicionados a movimentos dialéticos.
Importante ressaltar aqui a questão de que nem o espectro semântico do termo kāla no idioma sânscrito, nem as maneiras pelas quais as tradições hindus abordam a eternidade segundo seus próprios paradigmas culturais, serão abordados nesta Comunicação, ficando para uma outra oportunidade fazê-los.
Desde a historiografia de James Mill [1826], até Mircea
Eliade [1991, originalmente publicado em 1951], a postura
acadêmica predominante foi a de atribuir à mentalidade hindu apenas a
perspectiva cíclica, muito por conta do limitado espectro documental utilizado
para tal conclusão, i.e. o Manu-Smṛti, o Mahābhārata, além dos Purāṇas, sem mencionar a exclusividade tipológica
dessa consulta documental, baseada apenas em determinada literatura sagrada
hindu. Como bem destaca Balslev [2009, pp. 141;145], “Sustenta-se que as tradições grega e indiana
nutriram uma concepção cíclica do tempo, enquanto a tradição judaico-cristã
manteve uma concepção linear.”; “Aceita-se, comumente, que a concepção indiana
de tempo é cíclica.”. Ao considerar aspectos como as idades do universo [yugas], a causa material, a fonte original de tudo o que existe [prakṛti], assim como a dissolução de toda forma de existência material [pralaya], Eliade registrará:
“O que
convém reter [...] é o caráter cíclico do tempo cósmico. Na realidade,
assistimos à repetição infinita do mesmo fenômeno [criação-destruição-nova
criação] pressentido em cada yuga [‘aurora’ e
‘crepúsculo’], mas completamente realizada por um mahâyuga. [...] Assinalemos que o mahâpralaya implica a regressão de todas as ‘formas’ de todos os
modos de existência no prakrti original indiferenciado.” [Eliade,
1991, p. 62]
“Na Índia
[...] essa abertura para o Grande Tempo, obtida por meio da recitação periódica
dos mitos, permite prolongar indefinidamente certa ordem ao mesmo tempo metafísica, ética e social, ordem que não leva
absolutamente à idolatria da história, pois a perspectiva do Tempo mítico torna
ilusório qualquer fragmento do tempo histórico.” [Eliade, 1991, p. 66]
Existem duas concepções cosmológicas védicas de tempo, com implicações diretas no cotidiano imediato de um praticante hindu, pertinentes para a abordagem desta Comunicação. Uma delas diz respeito ao grande ciclo cósmico [mahāyuga], dividido em quatro yugas ou idades do universo, i.e. kṛta yuga, tretā yuga, dvāpara yuga e kali yuga, de modo que um yuga subsequente sempre representa um enfraquecimento, uma desqualificação das esferas cósmica, ritual e moral em relação ao yuga anterior. No kṛta yuga, os seres humanos são virtuosos, livres do sofrimento e plenos de bem-aventurança, agindo sem interesses escusos e dedicando a vida ao cumprimento do dharma hindu. No kali yuga, o homem e o mundo atingem o limite da degradação nas esferas morais, sensoriais, ritualísticas e cósmicas [cf. Dimmitt, Buitenen, 1998, pp. 38.41]. Mil mahāyugas constituem um único dia de Brahmā [quatro bilhões, trezentos e vinte milhões de anos da contagem humana], equivalente a um kalpa, que se inicia com a criação [sṛṣṭi] do cosmos, quando o universo é emanado pela substância divina, não manifestada, e termina com a dissolução [pralaya] e reabsorção ao fundir-se novamente com o Absoluto. As dimensões do universo e todos os seres que ela comporta evanescem no final do dia de Brahmā ou kalpa, persistindo, na noite subsequente, apenas como o germe latente da necessidade de uma nova manifestação.
Outra maneira de se compreender um kalpa é enxergar os quatorze manvantaras [épocas de Manu] que o compõem, cada um comportando uma sequência de setenta e um mahāyugas mais um período equivalente a um kṛta yuga, terminando com um dilúvio universal que, por sua vez, dá origem a outro manvantara, até que se completem todas as quatorze épocas de Manu que constituem um kalpa. Em cada um destes quatorze manvantaras surgem os mesmos tipos de entidades, ou seja, o progenitor e legislador da espécie humana, primeiro codificador do dharma hindu, Manu, e seus descendentes que reinarão sobre a terra, além dos devas, dos sábios hindus [ṛṣis], etc [cf. Dimmitt; Buitenen, 1998, pp 23]. Segundo as tradições hindus, encontramo-nos no sétimo manvantara, cujo progenitor e legislador é Manu Vaivasvata, “Manu, Filho do Resplandescente”, “Manu, Filho do Deus-Sol Vivasvant”.
Com efeito, algumas fontes hindus [Kūrma Purāṇa I,5; Manu-Smṛti I,51-57; Bhagavad-Gītā VIII,16-19] apontam para uma dinâmica de repetição
mecânica, de reprodução exata dos fenômenos discerníveis pela percepção
sensorial imediata, essencialmente inspiradas pelos ritmos da natureza:
“O que quer que se veja existir aqui, em pé ou em
movimento, todo este mundo é destruído novamente quando o fim do yuga chega. /
Assim como os múltiplos signos sazonais aparecem sucessivamente quando a
estação muda, o mesmo ocorre com as existências no início dos yugas. / Assim é
esta roda, sem começo e sem fim, girando no mundo, causando infinitamente
criação e destruição.” [Mahābhārata I,1,36-38]
“Junto com as partículas atômicas perecíveis dos
cinco elementos dados pela tradição [smṛti], todo este mundo passa a existir em uma seqüência ordenada. / À
medida que é gerada de novo e de novo [punaḥ punaḥ], cada criatura segue por sua
conta a própria atividade designada a ela no início pelo Senhor Supremo
[Prabhu]. / Violência [hiṃsā] ou não-violência [ahiṃsā], gentileza [mṛduka] ou crueldade [krūratā], dharma ou adharma,
veracidade [ṛta] ou mentira [anṛta] – o que quer que ele designasse a cada um no
momento da criação, atrelou-se automaticamente àquela criatura. / Como a
mudança de estação adota automaticamente suas próprias características, os seres corporificados também adotam suas próprias características.” [Manu-Smṛti I,27-30, grifos meus]
Aqui surgem duas reflexões importantes para a compreensão da natureza do tempo segundo as tradições hindus a partir das coordenadas cíclica e linear de ritmo cronológico. Uma relativa à dinâmica entre a dimensão religiosa [cosmológica] e a dimensão secular [histórica] de temporalidade, e outra relativa à existência de perspectivas lineares no pensamento temporal hindu.
Estudos recentes têm apontado para vários exemplos na cultura hindu de linearidade temporal. Witzel [1990, p. 5] afirma que, desde o sânscrito védico, a estrutura de vários idiomas indianos, com sistemas bastante complexos de expressão de vários estágios no passado, inclusive com vários tempos verbais literalmente no passado – enquanto um referencial qualitativamente distinto do momento presente, e, portanto, com o qual estabelece um raciocínio de linearidade –, mostram que a ideia da passagem de tempo nunca esteve ausente das tradições indianas, inclusive as hindus.
Na própria textualidade narrativa hindu é possível identificar momentos de concepção linear das dinâmicas cosmológicas no sentido da irrepetibilidade de acontecimentos, na qual cada evento é único e jamais repetível em quaisquer de suas características, como, por exemplo, o fato de cada yuga possuir uma duração diferente dos outros yugas, que os yugas se estabelecem numa sequência contínua, não sugere uma ciclicidade fechada, mas uma linearidade:
“Então, o abençoado criador, Brahmā Bhagavān, criou tudo. Criaturas que receberam de volta os karmas que eram seus da criação anterior, / Sendo criadas de novo e de novo [punaḥ punaḥ], retornam precisamente aos mesmos karmas. Violência [hiṃsā] ou não-violência [ahiṃsā], gentileza [mṛduka] ou crueldade [krūratā], dharma ou adharma, verdade [ṛta] ou mentira [anṛta] – produzidos a partir disso, eles retornam a Ele; portanto, eles se ocupam nisso.” [Viṣṇu Purāṇa I,5,59-60]
“Mārkaṇḍeya disse: ‘A criação está impregnada das boas e más ações da existência anterior, oh Brahman; e por causa desta lei bem conhecida, os seres criados, embora sejam destruídos na dissolução, não são libertados das consequências de suas ações. [...] Quaisquer que sejam as ações com os quais eles foram severamente dotados originalmente em sua criação, essas mesmas ações com os quais eles foram dotados quando foram criados repetidas vezes. / Violência [hiṃsā] e não-violência [ahiṃsā], gentileza [mṛduka] e crueldade [krūratā], dharma e adharma, verdade [ṛta] e mentira [anṛta] – trazidos assim à vida eles adquirem seu próprio ser; portanto, individualmente, eles se ocupam com essas características. / O próprio Bhagavān, o criador, estabeleceu a diversidade e a especificidade entre as coisas criadas por meio de seus órgãos, atividades e corpos. / E ele atribuiu nomes e formas aos seres criados, e propôs os dharmas dos devas e outros seres, até mesmo pelas palavras do Veda no início. / Ele dá nomes aos ṛṣis, às várias classes criadas entre os devas e às outras coisas que surgiram no fim da noite. / Como os sinais das estações aparecem em sua estação apropriada, e várias formas aparecem em alteração, então esses mesmos sinais e formas aparecem como fatos reais nas idades e outros períodos’.” [Mārkaṇḍeya Purāṇa XLVIII,2.39-44, cf. Pargiter, 1904, pp. 233.236].
Na esteira desta percepção, Lynn Thomas [1997, p. 87] destaca alguns detalhes importantes para a compreensão de certos momentos de ineditismo acontecimental que apontem para um ritmo temporal linear que negue uma reversibilidade absoluta do tempo [“O ciclo é repetido, mas não replicado”, cf. Sharma, 2003, p. 115, n. 19, itálico do autor], constituindo-se numa continuidade imbuída de mudança sobre todos os aspectos viventes, pois embora Brahmā nasça no início de cada ciclo e desempenhe as mesmas funções neste mesmo momento da criação, os detalhes de seu nascimento são diferentes em cada kalpa, assim como cada manvantara é habitado não apenas por um Manu único, diferente dos demais, mas também por saptarṣis e devas distintos entre si de acordo com seu momento cósmico:
“Existem
mais seis Manus na linhagem deste Manu, o filho do Não-Criado [Svāyaṃbhūva]: Svārociṣa, Auttami, Tāmasa, Raivata, Cākṣuṣa, com grande energia, e o
filho de Vaivasvat. Dotado de
grande nobreza e poder, cada um deles gerou sua própria linhagem. Estes
sete Manus de imensa energia, com o filho do Não-Criado à frente, deram origem
e garantiram todo este mundo, o móvel e o inerte, cada um em seu próprio
antara. [...] Há um dharma para os homens no kṛta yuga, outro no tretā yuga,
outro ainda no dvāpara yuga, e um diferente no kali yuga, de acordo com a redução progressiva ocorrendo em
cada yuga.” [Manu-Smṛti I, 61-63.85, grifos meus]
“Em um dos dias de Brahmā, oh Brahman, pode haver
quatorze Manus. Eles vivem de acordo com suas porções [...]. Os devas,
os sete ṛṣis, Indra, Manu e os reis,
seus filhos, são criados com Manu e passam à dissolução com ele em ordem
regular.” [Mārkaṇḍeya Purāṇa XLVI,32-33, cf. Pargiter, 1904, pp. 226.227, grifo meu]
Com efeito, convém destacar os argumentos de Balslev sobre a natureza da repetição exata de uma periodicidade estrita de todos os eventos cósmicos pressuposta sobre a cultura hindu. Ao discorrer sobre kalpas, yugas, manvantaras etc, Balslev registra: “Os ciclos cósmicos podem ser comparados entre si em termos de semelhança genérica, assim como um dia se parece com outro, mas a ideia de repetição exata envolvendo o retorno dos particulares não ocorre. A ideia de ciclos cósmicos ocorre tanto nos épicos quanto nas Upaniṣads.” [Balslev, 2009, p. 146] e “É de se notar que a roda do devir, no contexto indiano, não envolve uma repetição mecânica do particular/do individual, nem impede a salvação, nem de forma alguma implica que uma alma libertada possa ser puxada de volta para esta existência novamente atrelada à morte.” [Balslev, 2009, p. 147].
Outros
exemplos pontuais que refletem a existência de uma concepção linear de tempo na
cultura hindu são, por um lado, a concepção de sucessão discipular
intergeracional circunscrita à transmissão de conhecimentos ritualísticos e
especulativos védicos, conhecida no sânscrito como guruparamparā, e, por outro, a noção de linhagem régia das
dinastias hindus, conhecida no sânscrito como vaṃśa. A partir das palavras de Kṛṣṇa, é possível enxergar um exemplo claro de guruparamparā na Bhagavad-Gītā [IV,1-2a]:
“Śrī Bhagavān disse: ‘Ensinei este
imperecível conhecimento do yoga ao deva do Sol, Vivasvān, e Vivasvān ensinou-o
a Manu, o pai da humanidade, e Manu, por sua vez, ensinou-o a Ikṣvāku. / Este conhecimento foi então
recebido através da transmissão por sucessão discipular, e os sagrados reis
compreenderam-na dessa maneira’.”
A guruparamparā à qual se liga Bhaktivedānta Svāmī
Prabhupāda, principal divulgador no século XX E.C. da religiosidade hindu
conhecida como Gauḍīya Vaiṣṇava, é uma dentre várias ilustrações interessantes da consciência de
linearidade do pensamento hindu: Kṛṣṇa → Brahmā → Nārada → Vyāsa → Madhva → Padmanābha → Nṛhari → Mādhava → Akṣobhya → Jaya Tīrtha →
Jñānasindhu → Dayānidhi →
Vidyānidhi → Rājendra →
Jayadharma → Puruṣottama → Brahmaṇya Tīrtha → Vyāsa Tīrtha → Lakṣmīpati →
Mādhavendra Purī → Īśvara Purī →
Caitanya → Rūpa →
Raghunātha → Kṛṣṇadāsa → Narottama → Viśvanātha → Jagannātha →
Bhaktivinoda → Gaurakiśora → Bhaktisiddhānta Sarasvatī → Bhaktivedānta Svāmī Prabhupāda [Bhagavad-Gītā como ele é, 1995, p. 31].
Por
sua vez, para além da linhagem real lunar [Candravaṃśa], à qual pertencem os heróis do épico Mahābhārata,
a linhagem solar [Sūryavaṃśa] da Casa Real dos Ikṣvākus, à qual pertence Rāma – um dos avatāras
de Viṣṇu, de acordo com o Ayodhyākāṇḍa, segundo livro
do Rāmāyaṇa de Vālmīki –, é outro nítido exemplo de
temporalidade linear segundo a cultura hindu: Brahmā → Marīci → Kaśyapa →
Vivasvan → Manu → Ikṣvāku → Kukṣi → Vikukṣi → Bāṇa → Anaraṇya → Pṛthu → Triśaṅku →
Dhundhumāra → Yuvanāśva → Māndhātṛ
→
Susandhi → Dhruvasandhi → Bharata → Asita → Sagara → Asmañja
→ Aṃśumant → Dilīpa →
Bhagīratha → Kakutstha → Raghu → Kalmāṣapāda Saudāsa → Śaṅkhaṇa → Sudarśana → Agnivarṇa → Śīghraga → Maru → Praśuśruka → Ambarīṣa → Nahuṣa → Nābhāga → Aja → Daśaratha → Rāma [Ayodhyākāṇḍa CII, cf. Pollock, 2007, pp. 303-305].
A presença de Manu nesta concepção linear é significativa pelo fato da governança política [rājadharma] védica estar intrínseca e irrevogavelmente associada ao estabelecimento do dharma, em sua plenitude, entre os praticantes hindus neste mundo terreno, segundo suas próprias perspectivas confessionais. Com efeito, o próprio enredo do Rāmāyaṇa de Vālmīki encerra per se uma linearidade temporal que começa com a decisão dos devas em se transformar em avatāras para restaurar cosmicamente o dharma ameaçado por Rāvaṇa, e termina com Rāma reassumindo sua forma plena de Viṣṇu e retornando para onde os devas habitavam.
Para além destes exemplos, vale ressaltar a linearidade da “biografia
transmigracional” de uma alma hindu, não apenas na sequência de
existências distintas entre si que ela experimenta no fluxo do saṃsāra segundo o dharma hindu, mas
também entre um pralaya e uma sṛṣṭi, como registra Medhātithi
em seu comentário [Manubhāṣya] ao Manu-Smṛti
[I,28], ao afirmar que Prajāpati
“faz a criatura nascer naquela
família de criaturas que é indicada pelo ato realizado por ela durante o ciclo
anterior... se a criatura teve, no passado, uma conduta virtuosa, é levada a
nascer em uma família na qual seria capaz de experimentar os bons resultados
dessa conduta... O que acontece é que no início de cada nova Criação [sṛṣṭi], surgem os atos praticados pelas criaturas no
ciclo anterior, após terem, durante a Dissolução [pralaya], ficado latentes em sua fonte.” [Jhā, 1920, p. 67]
Portanto, é possível visualizar nitidamente, a partir de trechos da literatura sagrada hindu, que sua cultura conhece sim a noção linear de temporalidade, que ela não se restringe somente à repetição mecânica dos acontecimentos, à redundância literal dos fatos mediante as expectativas confessionais hindus baseadas não somente em seu próprio e vasto manancial narrativo, mas também em suas relações interpessoais e intergeracionais.
Uma última questão merece destaque aqui. Para Sharma [2003, p. 95], “não é o conceito de tempo,
mas de cosmologia, que é cíclico no pensamento hindu, e, além disso, este próprio
conceito aparece em sua forma completa apenas por volta do primeiro século.”.
Neste caso, é necessário salientar que experiências humanas sobre o tempo são,
irrevogavelmente, construções culturais que refletem diferentes
contextos naturais, históricos ou sociais [Malinar, 2007, p. 1], de modo que uma distinção
radical entre cosmologia [religiosa] e história [secular] se torna irrelevante
para a compreensão da natureza do tempo nas tradições hindus: “Esses ritmos de ordem social se manifestam em
narrativas tanto mitológicas quanto históricas, assim como em práticas rituais
e artísticas ou métodos de cura.” [Idem, p. 2].
Para Malinar, lidar com o tempo é estabelecer relações com os acontecimentos e memorizá-los num contexto sócio-cultural específico. A existência dos vaṃśas como expressão de linearidade temporal no intuito de legitimar dinastias e reivindicar hegemonia política não elimina outras maneiras de interpretar o tempo enquanto uma história cósmica, conforme relatos narrativos confessionais e encenações em performances rituais: “A Índia ou Bhāratavarṣa tornou-se uma região do cosmos, e tudo o que acontecia lá era colocado na estrutura do tempo cósmico. Em conseqüência, histórias dinásticas, narrativas épicas e mitos, origens de rituais e festivais tornaram-se parte desta estrutura abrangente.” [Malinar, 2007, p. 8]
Como última reflexão, ainda resta uma pergunta no ar: a partir da
conclusão de que a cultura hindu possui não apenas a noção de tempo cíclico,
mas também a de tempo linear, é possível visualizar a existência de uma
dinâmica espiralada na noção de tempo hindu que conjugue ambas as diretrizes?
Autoras como Malinar [2007, p. 2] e Thapar [2004, p. 8; 2007, p. 29] aludem apenas
genericamente ao tempo enquanto uma espiral ou uma ondulação [oscilação], sem
entrar no mérito de sua fisiologia, nem se lançar à prova de sua aplicabilidade
na cultura hindu. Seria possível identificar nos ritmos temporais hindus a recorrência de dinâmicas paradigmáticas nos próprios acontecimentos em
contextos objetivos diferentes sem reproduzi-los literalmente em sua forma, de
modo que os recortes temporais acabariam servindo como plataformas que,
regularmente, disponibilizam possibilidades de experiências pontuais que, em
último caso, guardariam semelhanças genéricas com outros períodos, sem
repeti-los mecanicamente, não se reduzindo totalmente nem à previsibilidade dos
ritmos cíclicos, nem ao constante ineditismo dos ritmos lineares de tempo?
Referências
Matheus Landau de Carvalho é bacharel e licenciado em História com habilitação em Patrimônio Histórico pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2009. Especialista [2010], Mestre [2013] e doutorando [2019-] pelo Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião [PPCIR], pela mesma Universidade. É membro do NERFI [Núcleo de Estudos de Religiões e Filosofias da Índia] e da ABHR [Associação Brasileira de História das Religiões].
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Olá, Matheus.
ResponderExcluirEm primeiro lugar, quero registrar aqui meu apreço pelo seu tema e pela forma como ele foi abordado por você. Mergulhei em suas palavras, percebendo como você possui apontamentos pertinentes e demonstra grande compreensão sobre o tema, com muitas particularidades que não consegui encontrar em outro lugar.
Dentre muitas curiosidades surgidas, pensei especialmente na questão do ineditismo diante de uma dimensão religiosa (no caso cosmológico). Percebo que, no caso hindu, seja possível localizar uma perspectiva de passagem de tempo, que foi negado pela historiografia ao longo dos anos. Assim, gostaria de saber: como anda a revisão historiográfica sobre o tema? Ainda há um longo caminho de novos direcionamentos ou a dimensão secular já caminhou bem ao olhar para a dimensão cosmológica?
Desde já, muito obrigado!
Carlos Aldlen Torres de Souza.
Prezado Sr. Carlos Aldlen Torres de Souza, desde já agradeço imensamente pelas palavras de seu comentário... ;)
ExcluirSobre a primeira pergunta (“como anda a revisão historiográfica sobre o tema?”), é o seguinte: até onde me é permitido saber, as conclusões e revisões metodológicas param exatamente neste ponto de um esforço em identificar a percepção do tempo como quantificação linear da mudança nas tradições hindus, além de apenas superficialmente, pontualmente, aludir a possibilidades especulativas de um ritmo espiralado (ou ondulado) de tempo, principalmente em textos de Romila Thapar e Angelika Malinar. Este esforço de PROVAR esta, digamos, fisiologia espiralada de tempo nas dinâmicas temporais da cultura hindu, é o que justamente constitui o argumento de minha tese em Ciência da Religião (“Tempo e dharma no Rāmāyaṇa de Vālmīki”) aqui na Universidade Federal de Juiz de Fora. Ressaltando, Sr. Carlos Aldlen Torres de Souza, que o espectro semântico de um termo caríssimo a esta pesquisa, “kāla”, não foi abordado nesta Comunicação, o que, em si, abre um horizonte bastante largo para argumentações e explanações numa perspectiva mais ampla...
ExcluirA respeito da segunda pergunta (“Ainda há um longo caminho de novos direcionamentos ou a dimensão secular já caminhou bem ao olhar para a dimensão cosmológica?”), eu acredito que depende muito de quem aborda esta questão, para quem ela é abordada, enfim, todo um contexto dialogal de perspectivas, análises e comprovações, bem ao sabor da metodologia historiográfica e, também, filosófica. Quem aborda esta questão é um historiador nativo-praticante, um historiador ocidental-não-praticante, um historiador nativo-não-praticante, um historiador ocidental-praticante, um filósofo nativo-praticante, um filósofo ocidental-não-praticante, um filósofo nativo-não-praticante ou um filósofo ocidental-praticante? Quais as fontes utilizadas? (e veja bem, Sr. Carlos Aldlen Torres de Souza, que neste ponto trata-se de um espectro documental bem elástico, inclusive no suporte das informações analisadas, seja este suporte escrito, oral, poético, prosaico, dramático, antigo, moderno...). Além disso, quais são os objetivos em tela? Digo isso pela inseparabilidade, na cultura hindu, entre as duas dimensões, i.e. secular e cosmológica, pois trata-se, para as tradições hindus, de um todo que não se preocupa com a separação de suas próprias percepções de tempo, especificamente nestas duas categorias, tomadas aqui apenas como instrumentais de análise e percepção que possam vir a revelar as dinâmicas abordadas (cíclica, linear e espiralada). Segundo a minha percepção particular, é possível identificar não exatamente se a dimensão secular já caminhou bem ao olhar para a dimensão cosmológica, mas de, num primeiro momento, digamos, estático, de ver como cada uma destas referências (secular e cosmológica) acontece nos diversos âmbitos, recortes de análise (i.e. transmigração das almas, yugas, manvantaras, guruparamparā, vaṃśa, kalpas, acontecimentos políticos da história indiana, mudanças de regime econômico, etc), e de como, num segundo momento, digamos, dinâmico, há alguma interação entre estas instâncias temporais supracitadas.
ExcluirPor exemplo, Sr. Carlos Aldlen Torres de Souza: do ponto de vista histórico, uma alma hindu que habitou um corpo no subcontinente indiano durante o reinado de Aśoka (com seus contextos históricos empíricos irrevogáveis e determinantes para as consequências transmigracionais da respectiva alma hindu) encontrará um contexto qualitativamente diverso habitando um outro corpo num contexto histórico pós-reinado de Aśoka (com seus contextos históricos empíricos irrevogáveis e determinantes para as consequências transmigracionais da respectiva alma hindu DIFERENTES DE SUA VIDA TERRENA ANTERIOR). Aqui há uma dinâmica, ao meu ver, espiralada, resultado do encontro de uma linha (a mudança de UMA condição existencial para OUTRA DIFERENTE, INUSITADA) e de um ciclo (esta alma VOLTA não somente a ESTE MESMO PLANETA, mas também às MESMAS COORDENADAS ortodoxas e ortopráxicas do DHARMA hindu, sujeita às MESMAS COORDENADAS pressupostas nas RELAÇÕES HUMANAS, etc...). No fim das contas, o que sempre sobressai pra mim nesta questão, Sr. Carlos Aldlen Torres de Souza, é até que ponto o pesquisador (historiador ou não) se aprofunda na dinâmica implícita neste âmbito entre (i) a descrição fisiológica dos acontecimentos (e, aqui, sejam seculares ou cosmológicos) (ii) e os vetores lógico-racionais e linguístico-semânticos utilizados para organizar a argumentação em torno desta questão.
ExcluirEm tempo: quando registro acima “sejam seculares ou cosmológicos”, Sr. Carlos Aldlen Torres de Souza, é no intuito de me colocar exatamente entre uma perspectiva ocidental que distinga secular de religioso, e uma perspectiva hindu que não a faça, muito na expectativa de não cair num orientalismo distorcente, e, além disso, contribuir, na medida do possível, para uma compreensão madura na linha de uma cooperação crítica entre paradigmas culturais diferentes, neste caso específico, as tradições hindus e as tradições acadêmicas historiográficas ocidentais.
ExcluirEspero ter respondido às suas indagações, Sr. Carlos Aldlen Torres de Souza. Novamente, agradeço demais pela generosidade das palavras e pela argúcia dos questionamentos...
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