BORDANDO O DIVINO: GUANYIN EM CABELO HUMANO
Faxiu, em
chinês tradicional, designa a prática de bordar com fios de cabelo humano. É
desconhecido precisamente quando essa teve início: aqueles bordados que
sobreviveram ao tempo, conjuntamente com relatos poéticos, autobiográficos ou
anedóticos, nos revelam sua presença desde, no mínimo, a dinastia Sung
[960-1279]. Contudo, é na China Imperial tardia - sobretudo durante as dinastias Ming [1368-1644] e Qing [1644-1911]
- que a prática se popularizou entre mulheres ascetas na feitura de imagens,
usualmente retratando a bodisatva Guanyin.
A prática do faxiu encontra-se, então, em um curioso entrecruzamento entre
bordado, espiritualidade e gênero. Uma sofisticada forma de arte devocional
produzida no período, pretendemos ponderar porque esse foi o meio eleito por
mulheres das elites letradas para exprimir seus anseios de natureza espiritual.
Assim, enquanto uma prática generificada, como ponto de partida, questionaremos que mulheres são essas que dedicaram seu
próprio corpo e habilidade na realização de tais imagens.
O ideal e o esteriótipo feminino na China
Imperial tardia
Em Woman’s
Percepts, um poema escrito com objetivo de instruir esposas como conduzir
suas responsabilidades, a matriarca Li Shi escreve: “As for daughters, we
instruct them in spinning / As for sons, we instruct them in the Classic of
Poetry and the Documents” [apud
Fong, 2004, p.9]. Ou seja: filhas deveriam ser ensinadas a tecer e
coser; filhos deveriam ser ensinados sobre os clássicos da poesia e a leitura
de documentos. Estamos, portanto, diante de uma educação generificada –
evidência de uma sociedade organizada a partir de categorias de gênero que, como tal, produz e perpetua as diferenciações psicossociais entre
feminilidade e masculinidade, principiando ainda na infância.
Compor uma paisagem que cobrisse
significativamente a experiência feminina na China Imperial tardia nos parece
uma tarefa demasiadamente árdua e extensa para os presentes propósitos.
Entretanto, para analisar a prática
do faxiu, devemos delinear alguns princípios
do ideal e do estereótipo femininos [Parker, 2019, p. 97] no contexto em
questão.
Em um período marcado fortemente pelo
neo-confucionismo, rememoremos que Confúcio define em seus escritos as mulheres
como “leitoras passivas” e “recipientes” da cultura dominante masculina [apud
Fong, 2004, p. 3], valorizando características como a diligência, piedade,
castidade, pureza e fidelidade. Manuais
de etiqueta de até XI a.C., definem as Quatro Virtudes femininas, um conjunto
de princípios morais e normas sociais básicas de comportamento para mulheres
casadas no leste asiático, como: moralidade, discurso, conduta e trabalho [nügong].
Francisca Bray [1997, p. 256], ao analisar as
relações de gênero no contexto da prática têxtil na China Imperial tardia, propõe
uma diferenciação entre “woman’s work”
e “womanly work”. O primeiro, trabalhos de
mulheres, designa amplamente quaisquer atividades realizadas por
mulheres; enquanto o segundo,
trabalhos femininos, atividades morais ligadas
a uma identidade generificada
feminina. Dentre os trabalhos
femininos aos quais mulheres deveriam se dedicar cotidianamente,
compreendidos na ideia de nügong,
estão: cozinhar, educar os filhos, praticar a sericultura, tecer, coser e,
claro, bordar.
Assim, ainda que por extensão suas ações
repercutissem social e economicamente na China, notamos que a influência
exercida pelas mulheres na prática de seus trabalhos se encontrava circunscrita
ao âmbito domiciliar e cotidiano.
É, pois, através do cumprimento de suas
virtudes, bem como do exercício religioso, o qual compreendia atividades como
repetir o nome de Buda, declamar o Sutra, meditar, venerar Guanyin e manter uma dieta vegetariana, que as mulheres
pertencentes às classes letradas alcançariam a iluminação espiritual - marcando
aquilo que Chung-fan Yu [apud Li, 2012, p. 136] denomina “religiosidade
domesticada”.
Contudo, é válido
ressaltar que o lar na China Imperial tardia não se configura apenas como um
sítio de reforço dos papeis de gênero pautados pela ortodoxia confuciana, mas
também um espaço de agência artístico-criativa. Por meio da crença de que a
feitura própria de ícones religiosos seria uma atitude meritória, mulheres eram
estimuladas a utilizar seus próprios recursos e habilidades para a produção dos
ícones que viriam a adorar. Tal crença abria espaço para negociações de ordem
subjetiva, onde mulheres reivindicavam conhecimento e autoridade artísticos
[Fong, 2004; Li, 2012].
Xiu [bordar]
Voltando-nos aos escritos sobre bordado, competem duas visadas distintas: as representações masculinas e as
femininas. Homens, poetas em sua maioria, usualmente revestem o ato de bordar
em uma aura romântica, beirando o erótico. O imaginário da jovem lânguida que
borda em silêncio, incitando o interesse masculino, tamanho o seu magnetismo,
apresenta-se frequentemente em sua literatura. Mulheres, em geral esposas e
mães, descrevem o bordado como um afazer rotineiro e polissêmico, assumindo
significados educativos, afetivos, intelectuais e espirituais.
Sua visão encontra-se documentada em poesias,
autobiografias e manuais, os quais podem ser compreendidos como
auto-representações de virtuosidade feminina [Fong, 2004, p. 6]. À medida que
objetivamos compreender suas motivações e intenções ao bordar imagens
religiosas a partir de seus próprios cabelos, privilegiaremos os escritos
femininos.
Passado de mães para filhas, de avós para
netas, de tias para sobrinhas, exercido junto a amigas e irmãs, o bordado
guardava forte significado afetivo para as mulheres que o praticavam,
proporcionando-lhes um espaço intimista de troca não apenas técnica, mas de
vivências e ensinamentos morais. Na
poesia, longas tardes de prazer passadas com outras mulheres a bordar são
descritas como momentos de criação ou fortalecimento de vínculos: “How wonderful that we know each other’s
interests, / Laughing we talk until the last drip of the water clock / Opening
the dressing case, together we look at the almost finished embroidery, […] / In
the moonlight before the lamp we bind our thoughts and dreams together” [Yunjin
apud Fong, 2004, p. 22].
Entretanto, quando
exercido solitariamente, o ato de bordar toma uma dimensão espiritual. Todo
bordado é construído a partir de uma lenta acumulação de pequenos pontos. É,
portanto, uma tarefa progressiva, demandando tempo, repetição e concentração,
além de disciplina manual e visual, conquistada apenas com a prática. Por
analogia, tais aspectos aproximam o bordado de atividades já citadas, como
repetir nome de Buda, declamar o Sutra e meditar, encontrando espaço facilmente
na vida contemplativa das mulheres. Reclusas
em seus quartos de costura, as mulheres se dedicavam inteiramente ao ofício. Ding
Pei [apud Fong, 2004, p. 39], no manual de bordado intitulado Xiupu, ratifica: “One concentrates
one’s attention single mindedly and contemplates principles with a serene mind”.
Ressaltemos
entretanto, que bordar é um processo que não se inicia quando a linha passa
pela agulha. Assim como
calígrafos e pintores, em geral homens, deve-se preparar o ambiente, tanto
interna como externamente. Ding Pei e Zhang Shuying, autora de outro
manual, descrevem o quarto de bordado
ideal como calmo, limpo, silencioso, bem iluminado, ornado com arranjos de
flores, incensos queimando e, reforçando seu caráter elitista, mesas laqueadas
e tecidos finos. Similarmente, o estado de espírito ideal para bordar seria um
de despreocupação e serenidade, aparte das perturbações mundanas.
Decerto, tais manuais são escritos a partir
dos moldes ortodoxos de virtuosidade feminina. Ding Pei [apud Fong, 2004, p.
40] chega a dizer que a prática do bordado seria capaz de transformar
características indesejáveis nas mulheres, como a loquacidade e a preguiça, em
qualidades positivas, como a quietude e a produtividade. Contudo, é interessante notar que a autora vai além desse
arquétipo, ressaltando que o bordado estimularia o discernimento e o julgamento
independentes, incentivando aquelas que a leem a se colocarem no mundo enquanto
sujeitos de ideologia e prática.
Xiu
Guanyin [bordar Guanyin]
Conforme expomos anteriormente, a confecção
própria de imagens para veneração guardava um sentido meritório, podendo ser compreendido por meio do conceito de ganying. Robert Sharf [apud Li, 2012, p.
137] explica esse aspecto da cosmologia Chinesa antiga, assimilado pelo
Budismo, como um princípio que fundamenta a relação entre o devoto e o divino.
Podendo ser traduzido como uma “resposta piedosa”, o suplicante deveria
estimular ou afetar [gan] o
Buda, por meio de uma ação que elicie uma resposta compassiva [ying] desse. Nesse sentido, quando as
devotas utilizavam o bordado, um labor que demanda tempo, evidência da
sinceridade de suas preces, para criar uma imagem, seria uma forma de
experimentar ganying.
É nesse sentido que,
durante as dinastias Ming e Qing, proliferam-se as imagens bordadas, em linha
ou cabelo, de Guanyin. Com origem no
sânscrito, seu nome significa “aquele/a que escuta à dor do mundo”, sendo
apontado/a no Lotus Sutra [apud Hedges, 2012, p. 3] como a personificação da
compaixão, sempre disposta a assistir as preces daqueles que necessitam. Não
por acaso, o/a bodisatva Guanyin
assume frequentemente uma forma provida de milhares de olhos e milhares braços,
conforme observamos no bordado abaixo:
Guanyin com milhares de mãos
e olhos, autoria desconhecida, c. 1644-1911. Fio de seda sobre seda, bordado,
60,5x40cm. Fonte:
https://tinyurl.com/kw3uk746.
Guanyin com milhares de mãos
e olhos [detalhe], autoria desconhecida, c. 1644-1911. Fio de seda sobre seda,
bordado, 60,5x40cm. Fonte:
https://tinyurl.com/kw3uk746
Referida frequentemente como a “mãe
universal”, Guanyin é caracterizado/a
por sua capacidade de transmutação, apresentando-se por meio de diferentes
corpos e, consequentemente, gêneros. Na iconografia chinesa, até a dinastia
Tang [581-618], foi representado sobretudo em sua forma masculina. A
proliferação da imagem feminizada de Guanyin
durante as dinastias procedentes pode ser elucidada a partir da popularização
da história de sua encarnação em Miao Shan.
As lendas variam, mas há um consenso de que
Miao Shan seria filha do rei laico Miaozhuangyan, que almejava que sua filha
levasse uma vida costumeira para uma mulher de sua classe, casando-se com um
nobre abastado e dedicando-se ao lar. Contudo, a jovem, influenciada pelos
preceitos do Dharma, queria para si uma existência simples, de devoção e
celibato monástico, implorando a seu pai que permitisse sua ordenação.
Enfastiado, Miaozhuangyan concorda que Miao Shan se junte a um monastério,
esperançoso de que esta desistisse.
Vendo sua filha cada vez mais determinada, o
rei manda que incendeiem o monastério. Miao Shan apaga o fogo com suas próprias
mãos. É, então, que Miaozhuangya decide executá-la – algumas versões da
história contam sobre a contratação de um carrasco, outras, que seu próprio pai
se encarregou da tarefa. Também variam os desfechos dessa execução, ora
contando que Miao Shan teria sido executada e mandada de volta por Iama, aquela
responsável pelo juízo final dos falecidos, ora contando que a mesma teria
escapado da morte com o auxílio de entidades sobrenaturais. Mas é de comum
acordo que Miao Shan passa a viver isoladamente na Montanha Fragrante.
Algum tempo depois, Miaozhuangya
adoece com icterícia. Nenhum médico é capaz de curá-lo. Já desesperançoso, o
rei recebe a visita de um monge, o qual afirma que a convalescença só seria
possível por meio de um remédio cujos dois principais ingredientes eram um par
de olhos e um par de mãos de alguém incapaz de sentir raiva. Sugere, também,
que havia um indivíduo assim nas redondezas, morando na Montanha Fragrante. Sem
saber que se tratava de sua filha, Miaozhuangya aceita que o monge interpele a
jovem, que prontamente cede suas mãos e olhos para a feitura do remédio.
Já
convalescido, o rei decide prestar seus agradecimentos àquele que realizou
tamanho sacrifício. Ao chegar na Montanha Fragrante, reconhece sua filha. É
então que, enquanto Miaozhuangya implora por perdão, Miao Shan se apresenta
como a Guanyin de milhares de braços
e milhares de olhos, pela primeira vez uma mulher. A história se conclui com
sua morte e a construção de um templo na Montanha Fragrante por mando de seu
pai.
Da lenda, podemos extrair algumas conclusões que podem nos auxiliar a esclarecer a predominância de Guanyin nos bordados femininos, tanto
com linha, quanto com cabelo:
I) Miao Shan, incapaz de se ordenar, leva uma
existência que, ainda que siga os ensinamentos do Dharma, é secular: tal como
aquelas que a bordam, Miao Shan é uma mulher asceta;
II) Ao oferecer seus olhos e mãos para a
operação de um milagre, a princesa realiza uma
automutilação, assim como virão a fazer as mulheres que extraem seus fios de
cabelo, utilizando seu próprio corpo, para produção de seus bordados;
III) Seu sacrifício tem como fim a
convalescença de seu pai. Conforme veremos, a maioria dos relatos acerca da
prática do faxiu, nos contam de
mulheres a pedir à Guanyin o
bem-estar de seus familiares;
IV) Por fim, Miao Shan é uma figura dúbia.
Ainda que extremamente devota, estamos diante de uma mulher que desobedece seu
pai para exercitar a fé, tomando suas próprias decisões de acordo com o que
considera melhor para sua jornada espiritual. Encontramos, pois, ecos da noção
supracitada das mulheres como sujeitos de ideologia e prática, que tomam
decisões e realizam julgamentos críticos, conforme estimulado por bordadeiras
como Ding Pei.
Faxiu [bordar
com cabelo]
É bem sabido que, para ser ordenado monge ou
monja, os devotos têm seu cabelo raspado ritualisticamente, simbolizando o
abandono daquilo que é mundano. Contudo, como
Yuhang Li [2012, p. 139-140] coloca, tal significado parece menos importante
quando nos reportamos à prática do faxiu.
Por um lado, na medicina tradicional chinesa,
cinzas de cabelo humano eram utilizadas para
estancar sangramentos e curar feridas – estando ligado à ideia de regeneração.
Por outro, em contexto ritualístico, era comum cortar os cabelos como forma de
oferenda, sendo espalhado pelo chão para a recepção do Buda ou de monges, os
quais voltavam instantaneamente a seu comprimento original de forma que poderiam ser oferecidos novamente
– estando ligado à ideia de renovação. Ambas qualidades são pertinentes na
compreensão do faxiu, pois, em geral,
as imagens bordadas são utilizadas como uma forma de buscar a convalescença
[regeneração] de males que afligem seus antecedentes ou descendentes
[renovação].
Segundo
relatos, o processo que precede o bordar, demandava alguns cuidados com os fios
de cabelo, possuindo de três a quatro etapas: I) recolher; II) limpar; III)
amaciar; IV) dividir [ou não].
A primeira
etapa, recolhimento, se dava a partir da prática do bafa, traduzível como “extração de fios de cabelos”. Uma forma
comum de se auto infligir dor no contexto imperial, uma vez que não
representava risco para vida do praticante, nem pretendia deformação
significativa, a extração de fios de cabelo seria similar a sangrar-se para
escrever o Sutra ou marcar-se o corpo com símbolos do divino. O tratado mahayan
Dà zhìdù lùn, por exemplo, irá
postular: “If you truly love the
[Buddhist] law, you should take your skin and use it as paper, take one of your
bones and use it as a brush, and use your blood to write this” [apud
Fister, 2000, p. 232].
A dor auto
infligida afetaria o estado de
consciência do devoto, que passaria a um estado mais fundamental do ser
[Glucklich apud Li, 2012, p. 145]. Assim, seria uma forma de experimentar ganying, fazendo com que a compaixão
sagrada, antes difusa e geral, se individue, se especifique, se personalize. Em suma, a dor aproxima o devoto e o divino. No contexto do
faxiu, as devotas instrumentalizavam seu corpo para dar forma
às deidades, tornando-se um com aquelas que representam.
Após o recolhimento dos fios os mesmos serão
lavados, amaciados e, por fim, poderão ser ou não divididos em espessura.
São três as formas de bordar com cabelo:
I) O primeiro
método de bordar seria passar múltiplos fios pela agulha. No bordado abaixo,
atribuído à reconhecida pintora da dinastia Yuan [1271-1368], Guan Daosheng
[1262-1319], utiliza múltiplos fios para bordar os cabelos, as sobrancelhas e
os cílios de Guanyin, enquanto seu
rosto, manto e corpo são feitos em linha de seda, produzindo um hipernaturalismo.
Guanyin, Guan
Daosheng, c. 1262-1319. Cabelo humano e fio de seda sobre seda, bordado,
105x50cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53.
Guanyin,
Guan Daosheng, c. 1262-1319. Cabelo humano e fio de seda sobre seda, bordado,
105x50cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53
II) O segundo
método consiste na utilização de apenas um fio de cabelo. Vejamos abaixo como a
poetisa e artista Ni Renji [1607-1685], aos 43 anos, bordou Buda inteiramente
com cabelo. Renji produziu a imagem para honrar seus pais falecidos e almejava
que esta fosse passada e venerada pelas gerações advindas, como explica a
inscrição a acompanha.
Buda, Ni
Renji, c. 1649. Cabelo humano sobre seda, bordado, s.d. Fonte:
https://tinyurl.com/2ztmap53.
III) No terceiro método, os fios de cabelo
são divididos em espessura antes se ser utilizados para bordar. Tal prática é
análoga àquela de dividir os fios de seda, produzindo várias linhas
extremamente finas. Não se sabe ao certo como essas mulheres realizavam a
divisão, mas um dos relatos, dessa vez por Ye Pingxiang [apud Li, p. 132], uma
garota de 14 anos a qual bordou uma imagem de Buda com fios de cabelo para
resgatar seu pai encarcerado por um crime que não cometeu, conta: “[I] used a metal blade, which was as sharp
as the tip of the awn of an ear of rice, to split hair into four strands”.
A técnica,
associada à aplicação de pequenos pontos, criam um aspecto pictórico
característico do estilo baimiao,
popular nas dinastias Ming e Qing - uma pintura da linha, sem preenchimento ou
sombreado e usualmente monocromática. No bordado abaixo, atribuído à Li Feng,
nascida durante o século XVII, retrata Guanyin
sentada sobre um tapete de grama em posição de meio ruyi. Realizado inteiramente a partir de finos fios, esse faxiu alcança três diferentes tons de
preto por meio do acúmulo de pontos e linhas, à exemplo do cabelo de Guanyin.
Guanyin, Li Feng, c. 1691. Cabelo
humano sobre seda, bordado, 68x35cm. Fonte: https://tinyurl.com/2ztmap53.
Guanyin [detalhe], Li Feng, c.
1691. Cabelo humano sobre seda, bordado, 68x35cm. Fonte:
https://tinyurl.com/2ztmap53.
Uma técnica notável, dividir os fios de
cabelos não deve ser considerado como uma mera etapa para alcançar determinado
aspecto estético. O refinamento técnico não deve ser
pensado a parte de seu encantamento religioso: “We could also say that there is a triple enchantment at work here, one related to the technical
process of splitting the hair, one in the process of making the embroidery, and
finally in the religious relation to Guanyin” [Li, 2012, p. 150, grifo
nosso].
Considerações finais
Ding Pei, em
seu manual Xiupu, apontou a escassez de estudos voltados para
a prática do bordado, atribuindo-a à sua desimportância. Mas rebate: se ele é
tão supérfluo, por que orna mantos imperiais? De forma assertiva, reclamando
autoridade sobre o assunto, evidencia o potencial criativo do bordar, capaz de
alcançar “similar wonders as the
calligraphy of talented men and the paintings of famous masters” [apud
Fong, 2004, p. 39]. Conforme
pontuamos no correr de nossa argumentação, as aproximações com as práticas de
caligrafia e pintura se estendem também ao caráter ritualístico, intelectual e
estético do bordado, seja esse realizado a partir de fios de seda ou de cabelo.
No entanto, o ofício carece de valorização. E
suas artistas, essencialmente mulheres, seguem enclausuradas em seus quartos,
em anonimato. No presente texto, buscamos
resgatar alguns desses nomes. Em última instância, o que os escritos e obras
sobreviventes de muitas bordadeiras evidenciam são os lares, aos quais essas mulheres
dedicaram suas vidas, como um espaço não apenas de conformação aos moldes
ortodoxos de feminilidade, mas um potente espaço de criação, apreciação
estética e afeto. Enfim, um espaço de agência.
Referências
Julia Guimarães Alves é bacharelanda em História da Arte pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ).
BRAY, Francesca.
Technology and Gender: Fabrics of Power in Late Imperial China. Berkeley:
University of California Press, 1997.
FISTER, Patrícia.
“Creating devotional art with body fragments: The Buddhist Nun Bunchi and Her
Father, Emperor Gomizuno-o” in Japanese Journal of Religious Studies, vol. 27,
n. 3-4, Set-Nov, 2000, p. 213-238. Disponível em: https://tinyurl.com/aza6fart.
FONG, Grace. “Female
hands: embroidery as a knowledge field in women's everyday life in late
imperial and early Republican China” in Late Imperial China, vol. 25, n. 1,
Jun, 2004, p. 1–79. Disponível em: https://tinyurl.com/2x6buk2h
HEDGES, Paul. “The
Identity of Guanyin: Religion, Convention and Subversion” in Culture and
Religion, vol. 13, n. 1, Mar, 2012, p. 91-106. Disponível em:
https://tinyurl.com/2vd5t3a6.
LI, Yuhang.
“Embroidering Guanyin: Constructions of the Divine through Hair” in East
Asian Science, Technology, and Medicine, vol. 36, n. 1, Ago, 2012, p. 131–166. Disponível
em: https://tinyurl.com/2ztmap53.
PARKER, Rozsika. “A criação da feminilidade”. In PEDROSA,
Adriano; MESQUITA, Amanda (org.). Histórias das mulheres, histórias feministas:
vol. 2 antologia. São Paulo: MASP. 2019. p. 95–107.
Boa tarde! Gostei bastante do texto, confesso que não conhecia essa expressão artística que, além de interessante, é também extremamente criativa. Ao ler o texto, surgiu-me a percepção de que, ao usarem o corpo para expressarem, majoritariamente, sua espiritualidade também estavam fazendo uma crítica social das funções das mulheres na sociedade. Sendo assim, a minha pergunta é: ainda nos dias de hoje, em que a questão do corpo é tão sexualizada, considerando essa forma de expressão discutida no texto, podemos dizer que o faxiu se coloca como uma crítica efetiva, engenhosa e, principalmente, proposital em relação à objetificação do corpo feminino?
ResponderExcluirEdriel Dantas Martins
Olá, Edriel! Muito obrigada pela leitura e comentário.
ExcluirNão sou uma grande estudiosa das relações de gênero na China, até mesmo por limitações bibliográficas - uma escassez que outras autoras apontaram em seus textos aqui do simpósio, como a Caroline Micaela de Souza Greco e a Teodora Maicá Soares. Mas, levando em consideração as leituras que eu realizei para analisar meu objeto, não acredito que se trate de uma crítica à objetificação/sexualização feminina.
Penso que a prática possui uma dimensão de resistência que se desenrola num campo micropolítico. A Maria Lugones, uma teórica argentina do feminismo decolonial, trabalha dois conceitos que eu gosto muito para pensar esse tipo resistência: sujeição (a formação/informação do sujeito pelo social) e subjetividade ativa (o senso mínimo de agência encontrado por esses sujeitos). A ideia é que esses dois processos estariam em permanente tensão, produzindo uma subjetividade resistente. Não se trata de reivindicações em espaços coletivos, muito menos estatais, mas uma resistência que se expressa por meios infrapolíticos, reivindicando significados próprios e opositivos.
É nesse sentido que eu penso a prática do faxiu. Se trata da ressignificação do bordado, um afazer prescrito às mulheres pelo ideologia patriarcal propagada pelo neoconfuncionismo. É importante ressaltar que essa técnica, assim como o bordado de forma geral, é ligada sobretudo às classes letradas, detentoras de certo poder econômico e social, que possuíam papéis de gênero muito bem definidos. Essas mulheres não podiam participar da política, estudar e, em certos períodos, sequer sair de casa. O que eu quis investigar a partir do meu objeto foi como as mulheres desse contexto encontravam no ambiente domiciliar, que lhes foi destinado por essa ideologia, formas de desenvolver afetos, arte, intelectualidade, espiritualidade, enfim, vida mesmo.
Não tenho motivos pra pensar essa prática seja, em si, uma reivindicação explícita e proposital de direitos ao corpo e à sexualidade femininos. Sobretudo quando lemos os poemas e autobiografias deixados por essas mulheres, os quais, ao menos numa primeira visada, se mostram complacentes com os moldes ortodoxos de feminilidade.
Espero ter esclarecido sua dúvida!
Abraços,
Julia Guimarães Alves.
Boa noite Julia, que satisfação ler seu texto! Somos ambos bacharelandos em História da Arte na UFRJ e sua pesquisa me interessou muito. Percebe-se sua dedicação e apreço ao tema, trazendo uma riqueza de detalhes e informações sobre a prática do Faxiu, relacionando-a sempre com o contexto histórico e com suas questões relativas de gênero e espiritualidade. Fiquei impressionado com as técnicas e métodos de bordado que podiam ser aplicados, e as imagens cumpriram um papel importante nesse processo de visualização.
ResponderExcluirAo longo da leitura do seu texto, e considerando a chegada e difusão do Budismo no Japão, fiquei me perguntando se práticas semelhantes de bordado não acabaram sendo "importadas" para o arquipélago em determinado momento. Fiquei imaginando também se o Faxiu seria uma prática essencialmente chinesa ou se teria se desenvolvido em outros locais do Oriente, ou se teria inspirado práticas semelhantes. Se tiver essas informações, poderia comentar um pouco sobre?
Obrigado e um abraço,
Lucas Camara Gibson
Oi, Lucas.
ExcluirMuito feliz de encontrar um colega da EBA por aqui!
Primeiramente, queria agradecer pela leitura e pelo comentário. A minha maior preocupação quando decidi escrever sobre esses bordados foi como falar de um objeto que pertence a uma historicidade e a uma cultura tão distantes da minha. Por isso, fico muito contente que o cuidado com que eu busquei tratar o tema tenha sido um ponto forte do texto para você!
Quanto à presença dessa técnica para além da China, sim, o faxiu também foi praticado em pelo menos um outro país do leste asiático. Uma das autoras que eu trago no texto, a Patrícia Fister (nossa conterrânea, inclusive!), estuda especificamente a produção artística de monjas japonesas usando fragmentos do corpo humano. Além de bordados com fios de cabelo, tanto no Japão, quanto na China, existem sinogramas feitos com unhas, objetos criados com ossos ou cinzas de familiares falecidos, escritos feitos com sangue, etc.
Outros países do Extremo Oriente não surgiram durante a minha pesquisa, mas considerando a influência budista, com a noção de ganying e de auto inflição de dor, suponho que possamos encontrar práticas semelhantes no restante do território.
Espero ter esclarecido sua dúvida. Caso se interesse, fica aqui a recomendação do texto da Patrícia Fister também!
Abraços,
Julia Guimarães Alves.
Oi Julia! Seu cuidado me saltou à vista não só pela forma hábil da sua escrita, mas porque também é algo que procuro ter como pesquisador de fotografia no Japão. Devemos sempre estar atentos e acredito que você fez isso com louvor.
ExcluirGuardei a referência da Fister, não fazia ideia dessa produção das monjas japonesas e com uso de outras partes do corpo, com certeza será algo que consultarei no futuro.
Obrigado pela resposta e espero que possamos trocar mais vezes, dentro e fora da EBA!
Abs,
Lucas Camara Gibson