José Ivson Marques Ferreira de Lima

TRÊS BONECAS CHINESAS: A RE-ORIENTALIZAÇÃO DAS MULHERES CHINESAS NO FILME MULAN (1998)


Mulan é um longa-metragem de animação dos estúdios Walt Disney, lançado no ano de 1998, produzido por Pam Coats e codirigido por Barry Cook e Tony Bancroft. O filme foi produzido durante um período que ficou conhecido como Renascimento Disney, que teve início no ano de 1989, no lançamento do filme A Pequena Sereia. Em linhas gerais, este foi uma época que marcou a saída dos estúdios Walt Disney Pictures  de uma crise intelectual e financeira, voltando à sua forma clássica de contar histórias e empreendendo novos elementos vindos de musicais da Broadway. Foi nessa mesma época que o estúdio decidiu atender a críticas que lhes foram feitas durante décadas e procurou histórias que não pertenciam ao habitual eixo eurocêntrico de suas produções.

O filme, que é inspirado no poema chinês de autoria anônima A Balada de Hua Mulan [FRANKEL, 1972, p. 38], conta a história de Fa Mulan, que possui problemas para se adequar às normas de gênero que lhe é imposta por sua família e sociedade, que assume o lugar de seu pai na guerra contra os invasores hunos. Dada a temática da animação, este é um filme que aborda as diferenças de gênero e a emancipação feminina que, ao assumir o papel de um homem, desafia todo o discurso acerca do que as mulheres são ou não capazes.

Entretanto, a jornada de herói da personagem Mulan é ambientada em uma sociedade da qual não é a mesma do que os produtores do filme, e embora os mesmos tenham se esforçado para viajar, compreender e pesquisar sobre a História e cultura chinesa, suas convicções acerca da sociedade chinesa se sobressaem ao longo de todo o filme, especialmente no que diz respeito à sociedade chinesa no geral que será representada como terrivelmente opressora para as mulheres e homogênea tanto em pensamento quanto em etnia. Além disso, as representações de masculinidade e feminilidade se darão nos termos ocidentais, sendo sobrepostas na China presente no filme. Esta autoridade dos estúdios Disney em representar a China de maneira que atenda às próprias noções deles sobre o que é ou era a sociedade chinesa – e as mulheres chinesas – incorre do que Edward Said chama de Orientalismo, ou seja, a noção estereotipada de um Oriente inventada pelo Ocidente [SAID, 2007]. Neste caso, de uma China opressora e misógina.

O presente artigo tem como objetivo discutir – a partir de três elementos retirados do filme: três bonecas que estão presentes seja na pré-produção (a chinesa que não possuía nome), no filme (a boneca de pano da passagem de Tung Shao) e nos produtos derivados (a personagem Mulan, um outro elemento do filme mas que aqui será trabalhado para além do mesmo) – a re-orientalização, ou seja, uma reinvenção estereotipada das mulheres chinesas no filme que incorre de uma objetificação sobre as mulheres que auxiliaram os produtores a significar ainda mais as suas representações orientalistas sobre a China, e de como podemos perceber isto no filme ou até mesmo em produtos licenciados (brinquedos, por exemplo) que parece cumprir uma finalidade semelhante nas mensagens que os produtores querem passar sobre a China para uma audiência global.

 

O curta-animado China Doll

Antes de ser um longa-metragem que desafia as convicções de gênero presente em uma sociedade patriarcal – e até mesmo das animações anteriores dos estúdios Disney – ou uma adaptação de um poema chinês, o projeto que então se tornaria Mulan (1998), era um curta animado sobre uma chinesa oprimida que encontra a liberdade após ser resgatada por um soldado britânico. [YIN, 2011, p. 63; WHIPP, 1998]

Foi o autor de livros infantis Robert D. San Souci quem indicou para o Thomas Schumacher, o então vice-presidente executivo da Walt Disney Feature Animation, o poema chinês. Foi a partir dessa indicação que foi abandonada a ideia do curto e, no final do ano de 1992 a início de 1993, o longa metragem adaptando A Balada de Hua Mulan foi tomando forma. Porém, a ideia de uma boneca chinesa representando a fragilidade feminina estava longe de ser abandonada.

 

A boneca encontrada na passagem de Tung Shao

Durante o filme, na chamada sequência 9.8, após a canção Alguém Para Quem Voltar (do original, A Girl Worth Fighting For), a tropa liderada por Li Shang encontra um vilarejo em chamas. Lá, Mulan/Ping encontra uma boneca de pano – a mesma que o líder huno Shan-Yu encontrou na sequência 7.3. Essa boneca provavelmente pertencia à uma criança indefesa que então estava morta, assim como a sua família.

A boneca de pano serve não somente como uma alegoria acerca da luta da qual a protagonista vinha travando até então, a luta por uma mulher que quer reconhecer-se e poder afirmar sobre quem é; como também a da condição das mulheres chinesas enquanto frágeis e indefesas, assim como aquela boneca.

 

A heroína, Fa Mulan

 A protagonista título da história, Fa Mulan é um caso especial a ser analisado. Desde os primeiros momentos do filme acompanhamos a sua falha: a falha em conseguir ser uma dama “honrada” digna de arranjar um bom casamento e de “honrar” os seus pais e suas semelhantes, resultando em uma plena insatisfação de si própria, sendo incapaz de reconhecer a si mesma. É através das experiências de Fa Mulan em sua jornada no mundo masculino que ela demonstra quebrar esse estereótipo de boneca chinesa que lhe é imposto. Além disso, ela rompe até mesmo com os padrões das princesas Disney anteriores. Ela não é submissa e nem precisa ser salva. Mulan é a única a pensar diferente na sociedade da qual ela está inserida, sociedade essa que é apresentada como homogênea em atitudes e ideias. Mulan é vista como uma chinesa que carrega ideais de uma estadunidense pós-feminista do final do século XX.

A partir do filme, a personagem Fa Mulan é transformada em um produto que é consumido por inúmeras crianças ao redor do mundo. Tal fascínio pela personagem, no entanto, se dá por ela aparentar ser chinesa, mas agir enquanto uma estadunidense [MA, 2000, p. 142]. Então, ela é uma boneca – um produto pronto para ser comercializado por aqueles que verão nela sua semelhante –, mas não nos mesmos termos das outras duas bonecas apresentadas neste artigo.

 

O Orientalismo a partir das representações do feminino

Nos três exemplos apresentados há uma afirmação ou uma desconstrução do estereótipo da boneca chinesa, da mulher chinesa que é submissa, indefesa e retraída. Em dois desses exemplos há a recorrência do “indefesa” e que precisa ser salva, no último exemplo, há  uma boneca que quebra esse estereótipo. No entanto, isso não ocorreu por acaso.

Para dar significado aos papéis de gênero presentes no filme, foi necessário antes de tudo a ambientação em uma China extremamente orientalizada: um reino autoritário, misógino, despótico e incapaz de produzir um ser que pense de maneira diferente ao que é apresentado como um consenso. Os papéis de gênero, a forma como estão representados são de acordo aos comportamentos e ideias que acompanhamos no mundo ocidental. Ou seja, a China representada no filme é um misto dos problemas que são da sociedade estadunidense com o que os produtores do filme acreditam que foi a mulher na História da China. Parte da equipe, de fato, viajou para a China em busca de compreender melhor a sua cultura e História [KURTTI, 1998, p. 46-65], mas tal viagem não foi suficiente para desmontar as percepções orientalistas sobre a sociedade chinesa.

Em resumo, a atitude da Disney com o filme Mulan (1998) pode ser compreendida como um esforço por parte do estúdio para adaptar uma história de uma sociedade da qual eles não compreendiam por “não serem chineses” [Ibidem, p. 24]. Mas que, porém, não os impediu de ter percepções orientalistas sobre os chineses. Apesar da tentativa da equipe de compreender, ainda sobressai no filme o que eles acham sobre o que de fato a sociedade chinesa é e foi.

Essa autoridade de dizer sobre o que a China é ou foi está presente no filme seja nas suas representações e em seus discursos (canções e falas de personagem, por exemplo). Essa atitude é o que demarca o Orientalismo, pois como o próprio Said argumenta, o Orientalismo surge enquanto “um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente”. [SAID, op. cit., p. 29]

O Ocidente, em geral, é extremamente ignorante a respeito dos chineses. Filmes como Mulan operam como uma ponte transcultural da qual uma audiência pode aprender mais sobre a História, costumes e culturas de outras sociedades. A Disney, através do filme e de seu estudo sobre a China, reclama para si a autoridade de falar sobre o que é a China, mais ainda, sobre o que é ser mulher na China.

A personagem Fa Mulan, então, é vista como alguém que só é diferente por possuir esses ideais que são próprios de uma sociedade que – supostamente – possui convenções superiores no que diz respeito às mulheres. E mesmo no filme, só passam a pensar diferente aqueles que possuem algum tipo de relação com a personagem principal. 

Lan Dong (2011) discorre sobre diversos autores que discutem a respeito da natureza transcultural do filme Mulan (1998), enfatizando que o debate acerca das representações da China está além do debate entre “real” e “invenção” (debate semelhante temos em Said). Fato, devemos levar em consideração que as representações orientalistas presentes no filme não surgiram com o mesmo, estas são resultado de processos históricos que dizem respeito ao colonialismo e ao imperialismo que moldaram a imagem da China e das mulheres chinesas.

No entanto, há nestas representações o papel dos produtores do filme Mulan (1998) de readaptar alguns desses estereótipos para afirmar a sua hegemonia da cultura estadunidense. Mulan, ao contrário de outras personagens femininas é vista como uma representante universal do feminino.

Essa noção de universalismo da história se faz presente no discurso do supervisor do projeto, Peter Schneider [KURTTI, op. cit., p. 23]. O poema A Balada de Hua Mulan trabalha com temas que podem ser facilmente assimilados por indivíduos de outras culturas e períodos, como foi o que ocorreu na própria China, na dinastia Tang [KWA, IDEMA, 2010]. Porém, essa noção de universalismo acaba por ignorar traços culturais presente nessas obras que são apagados em adaptações e sobrepostos com outros valores que irão menosprezar as discussões originais e impor as suas enquanto superiores, como ocorreu na animação. Conforme discutido, o agente direto para transmitir essa mensagem é a própria Fa Mulan, que é vista como uma chinesa apenas nos traços.

Dito isto, há uma dupla consideração a ser feita através dos estereótipos orientalistas sobre as mulheres chinesas: em primeiro plano há a reafirmação de velhos estereótipos ocidentais sobre as mesmas, como o próprio estereótipo da boneca chinesa; em segundo plano, há uma orientalização no que diz respeito ao consumo das mídias e produtos que irão derivar do filme, há aqui uma sobreposição de valores e problemas ocidentais em uma roupagem oriental. Essa noção de re-orientalização para consumo no filme Mulan (1998) é discutida por Sheng-mei Ma (2000).

 

Considerações finais

A animação Mulan (1998) conta uma história que é vista como revolucionária por parte de seus realizadores. Mulan representa um espírito feminino quase que atemporal que luta por sua emancipação perante a opressão que lhe é imposta. A partir de três exemplos tirados do projeto que resultou no filme: as bonecas chinesas e a Mulan, acompanhamos a construção do discurso sobre as mulheres na China de modo que acaba por re-orientalizá-las, isto é, a partir de estereótipos presentes há uma reafirmação de alguns elementos e até mesmo uma quebra deles para então comercializá-lo, como é o caso da personagem título.

Os três exemplos demonstram sobre como as mulheres chinesas são percebidas e objetificadas pelos produtores do filme, que irão trabalhar em um exemplo que desconstrua o estereótipo da boneca chinesa apresentado, com uma personagem que somente se libertar por possuir ideais e ações que dizem respeito a eles e a sua sociedade. Justificando assim uma hegemonia cultural, afinal, a solução dos problemas – que, por sua vez, são idealizados – de uma sociedade é através de atitudes de outras. Em ambos os três casos, física ou ideologicamente há um salvador ocidental para salvar as mulheres da opressão que é sintomática de uma sociedade representada enquanto atrasada e misógina.

No fim, Mulan (1998) é um ótimo exemplo sobre a transculturalidade de uma mídia, mas que infelizmente está longe de evitar incorrer em estereótipos orientalistas e sobreposições para generalizar e inferiorizar uma cultura – esta que por sua vez, durante séculos, desenvolveu a história que foi apropriada.

 

Referências

José Ivson Marques é discente do curso de História - Bacharelado da UFPE, membro do LEOM – Laboratório de Estudos de Outros Medievos e faz parte da curadoria de História da China do CEÁSIA – Coordenadoria de Estudos da Ásia.

DONG, Lan. Mulan’s legend and legacy in China and the United States. Pensilvânia: Temple University Press, 2011.

FRANKEL, Hans H. Ballads. In: The flowering plum and the palace lady: interpretations of chinese poetry. New Haven: Yale University Press. 1976. p. 68-72.

KURTTI, Jeff. The Art of Mulan. Nova Iorque: Hyperion, 1998.

KWA, Shiamin; IDEMA, Wilt L. Mulan: Five versions of a classic Chinese legend, with related texts. Indianapolis: Hackett Publishing, 2010.

MA, Sheng-mei. Mulan Disney, it’s like, re-orients. In: The Deathly Embrace: Orientalism and Asian American Identity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2000.

MITCHELL-SMITH, Ilan. The United Princesses of America: Ethnic diversity and cultural Purity in Disney’s Medieval Past. In: PUGH, Tison; ARONSTEIN, Susan (Ed.). The Disney Middle Ages: A fairy-tale and fantasy past. Springer, 2012. p. 209-224.

MULAN. Direção: Barry Cook, Tony Bancroft. Produção: Walt Disney Pictures. Estados Unidos: Buena Vista Pictures, 1998. 1 DVD (88 min.).

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

WHIPP, Glenn. Mulan Breaks the Mold with Girl Power; Newest Heroine Isn’t Typical Disney Damsel Waiting for Her Prince to Come’. Los Angeles Daily News, v. 19, 1998. Disponível em: https://web.archive.org/web/20150403112511/http://www.thefreelibrary.com/%60MULAN'+BREAKS+THE+MOLD+WITH+GIRL+POWER%3b+NEWEST+HEROINE+ISN'T+TYPICAL...-a083827546. Acesso em: 15 de set. de 2021.

YIN, Jing. Popular culture and public imaginary: Disney vs. Chinese stories of Mulan. Javnost-The Public, v. 18, n. 1, p. 53-74, 2011.

8 comentários:

  1. Bom dia, permita-me agradecer por trazer esse assunto extremamente interessante.
    Pensando em um contexto onde resolve-se trazer o filme Mulan para a sala de aula, quais aspectos deveríamos ressaltar para a construção de um debate sobre a temática em uma turma do ensino fundamental?

    Desde já agradeço,
    Emilly Layane de Sá Lima

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    1. Boa tarde, Emily. Agradeço pelo elogio e também pela sua excelente pergunta!
      Trazer o que estudamos para a sala de aula é sempre um desafio, e apesar da minha formação, é um desafio que sempre me pego pensando sobre. Há uma camada de complexidade em trazer determinados temas a partir de determinadas abordagens para o ensino fundamental, em parte, por conta da idade dos alunos e do próprio espaço limitado que os professores de História tem para suas aulas.
      No caso do filme Mulan, além de ser um filme que a maioria dos alunos já assistiram ou gostam, ele traz diversos debates acerca do papel da mulher na sociedade; performatividade e desigualdade de gênero; e também das tensões entre os "civilizados" e "bárbaros". Esses problemas presentes no filme são mais contemporâneos a nós do que aos chineses do século V-X (época da qual o filme se inspirou para criar sua própria temporalidade).
      Dito isto, o filme serve como uma ótima e eficaz porta de entrada para falar sobre acontecimentos do passado (por exemplo, a tensão Chineses-Hunos foi bastante inspirada pelo fim da Dinastia Han só que mais ainda nas tensões entre os romanos e os povos vizinhos durante a Idade Média) como também abordar questões das quais ainda nos são pertinentes, no que diz respeito ao papel social de homens e mulheres, a capacidade das mesmas e também sobre os estereótipos que são construído sobre os outros (povos do dito Oriente, sobretudo). Além disso, é uma ótima oportunidade para fortalecer o senso crítico dos alunos perante as mídias que eles consomem.

      Atenciosamente,
      José Ivson Marques

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  2. Boa noite!

    Quero em primeiro lugar parabenizá-lo pelo texto, que traz reflexões muito pertinentes e nos incita a des-automatizar a recepção de produtos culturais como este filme da Disney- do qual, aliás, confesso que sempre fui grande fã. Achei especialmente preciso o trecho em que afirma que "Mulan é vista como uma chinesa que carrega ideais de uma estadunidense pós-feminista do final do século XX".

    Quero colocar uma questão acerca da versão liveaction da história de Mulan, recentemente produzida pela Disney. Não assisti, mas acompanhei um pouco dos debates a respeito. Você diria que essa versão rompe de alguma forma com as construções da animação mencionadas no texto, apresentando uma China um pouco menos estereotipada?

    E, em caso positivo, será que um produto cultural como esse tem menos "permissão" por assim dizer para veicular tais generalizações a respeito de outras culturas hoje em dia? Ou as mudanças que porventura tenham sido feitas no sentido de apresentar uma China mais "real" dizem respeito a fatores puramente econômicos, como uma preocupação com a distribuição do filme no mercado Chinês?

    Atenciosamente,

    Nina Fernandes Cunha Galvão.

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    1. Boa tarde, Nina!
      Primeiramente, gostaria de agradecer pelo elogio e pela excelente pergunta. Admito que também gosto muito da animação, foi o primeiro contato - indireto - que tive com a cultura chinesa, e tenho certeza que foi o mesmo com várias pessoas, por isso acho importante fazer essa contribuição e trazê-la ao debate.

      Quanto ao live action, eu diria que ele se esquivou dos estereótipos e das controvérsias mais clássicas que envolveram o filme de 1998, como o caso da recorrente iconografia dos dragões e do Mushu (que é extremamente "americanizado"), por exemplo. Mas, acabou incorrendo em outras, como é o caso da representação dos Rouran. O curioso é que os chineses produziram um filme em 2009 que praticamente é uma aula sobre como os chineses enxergam a sua heroína e como eles veem os Rourans. Então, o filme de 2020 tentou se esquivar de antigos problemas, trazer uma historicidade para o filme, mas, a tentativa me aparentou ser um tanto quanto falha; pois o filme não consegue se equilibrar entre ser "real" ou fantasioso, além de alguns efeitos de câmera que é um clichê bem recorrente em filmes de luta americanos sobre os "orientais".

      A sua segunda pergunta é um pouco mais complexa, uma vez que a diminuição dessa permissividade é consequência da própria luta da comunidade chinesa e sinoamericana (no caso de Mulan) do que do público em geral. Por exemplo, aqui no Brasil a maioria dos espectadores não compreenderam a decisão da diretora em cortar o Mushu do filme. Essas mudanças são frutos da própria ascensão da economia chinesa, o próprio filme de 1998 foi feito para reconciliar a Disney com os chineses, após o estúdio financiar um filme do Scorsese sobre o Dalai Lama que foi considerado como anti-china (Kundun, 1997). Mulan na época já estava em fase de produção, porém ganhou essa missão de ajudar a Disney à não perder os espectadores chineses, sobretudo porque a China representava para eles (assim como ainda hoje) um mercado do qual eles não podem abrir mão. E claro, estamos falando da Disney dos anos 90, recém saída de uma crise e que estava muito longe de ter nas mãos o monopólio que tem atualmente. Em resumo, os fatores econômicos são a peça fundamental para o interesse dos estúdios de cinema, como a Disney, em representar a cultura chinesa de forma adequada.

      Atenciosamente,
      José Ivson Marques

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  3. Boa noite! Parabéns pelo artigo. Não sei se você assistiu o Live action, mas percebi que apesar dos produtores terem feito alterações na história objetivando que ficasse mais parecida com a cultura chinesa, a própria Mulan foi muito mais transformada em uma mulher estadunidense do que na animação, pois ela já "nasce" muito melhor que todas as outras pessoas da aldeia, ideia muito presente nos filmes norte americanos, enquanto na animação ela precisa fazer todo um esforço para aprender e comete vários erros antes de se tornar uma pessoa boa no que faz, ideia muito presente em animes e mangás orientais. Creio que o orientalismo ainda esteja muito presente no filme mais recente, embora os produtores afirmem o contrário.
    Como podemos combater esse orientalismo em salamde aula, quando a maioria dos alunos só conhece sobre o Oriente o que vê nas mídias?

    José Augusto Lara

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    1. Boa noite, José Augusto! Muito obrigado pelo elogio e pela excelente pergunta!
      Parte do que eu vou responder agora está muito ligado ao que respondi para a Emily.
      Concordo com você, a fórmula da jornada do herói (que está presente nas animações Disney do período do Renascimento) exalta muito o individualismo de suas protagonistas; e nas produções sobre outras culturas, acaba se associando às percepções orientalistas dos produtores e geram efeitos problemáticos na recepção que essas produções tem para a audiência ocidental (ou ocidentalizada) e acabam consolidando uma noção péssima sobre essas culturas ditas orientais.
      Sem dúvidas, a narrativa da Mulan enquanto um indivíduo excepcional diante de uma sociedade uniforme e atrasada é um problema da animação original e 22 anos depois, após diversas mudanças na postura do estúdio, essa narrativa ainda é recorrente.
      O curioso nisso tudo é que o poema original fala de uma experiência que traz ensinamentos tanto para as mulheres quanto para os homens. Recentemente, no filme chinês Hua Mulan (2009), temos a Mulan enquanto uma heroína que inspira ambos homens e mulheres, sendo que até a própria identidade dela como mulher acaba sendo tratado como algo a ser ignorado, por ser algo banal (ao contrário da animação, que apresenta um drama enorme que envolve até mesmo pena de morte).

      Em sala de aula, acredito que Mulan é ótimo para discutir o estereótipo do bárbaro e as tensões que envolvem os "civilizados" e os "bárbaros" durante a Idade Média e que por sua vez é consolidado no imaginário ocidental esses conflitos. Os produtores do filme inclusive trabalharam com essa noção dos conflitos serem algo análogo ao que ocorreu na Idade Média europeia. Há debates sobre gênero que o filme suscita, mas eu acredito ser muito necessário associar com o orientalismo, uma vez que as construções orientalistas dão significado às representações de gênero presentes no filme.
      Discutindo sobre esses temas centrais há a possibilidade de desconstruir essas percepções orientalistas que os alunos acabam tendo pelo consumo acrítico de determinados produtos culturais. Então, o filme acaba sendo um ótimo alicerce para incentivas os alunos a refletirem sobre as mensagens que os filmes acabam nos transmitindo e do quanto isso pode afetar a noção que eles tem sobre outros povos.

      Atenciosamente,
      José Ivson Marques

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