Douglas Pastrello

 OS BOMBARDEIOS ATÔMICOS DE 1945 E A HISTORIOGRAFIA EM DISPUTA


O desfecho da Segunda Guerra Mundial tem em seu epicentro a rendição incondicional do Japão, entretanto os motivos que levaram a rendição se encontram em uma disputa político-histórica. A historiografia subsequente de 1945 se divide em dois grandes nichos que sumarizam e discutem o evento: uma historiografia ortodoxa – também com uma corrente neo-ortodoxa – e outra reconhecida como “revisionista”.

Sidnei Munhoz (2015) categoriza a diferença entre as correntes históricas da seguinte maneira: os ortodoxos creditam aos bombardeios atômicos em Hiroshima e Nagasaki o fim do conflito, enquanto a corrente revisionista crê que não só os bombardeios atômicos eram dispensáveis como foram utilizados para outro pretexto que não a 2º GM. Por sua vez, a corrente neo-ortodoxa surge para contra-argumentar o “revisionismo” e propor novos argumentos que justifique as bombas atômicas empregadas em solo japonês.

A historiografia ortodoxa explicita que os bombardeios atômicos encurtaram a guerra notoriamente, além de terem salvado milhares de vidas que seriam ceifadas em uma possível invasão direta ao Japão. A partir desta corrente histórica formou-se o senso comum do ocidente em relação as bombas atômicas, algo facilmente imortalizado pelo estereótipo das tropas japonesas e do Império japonês – tidos como selvagens sanguinários no imaginário popular.

A benevolência resultante da bomba atômica não é apenas em relação aos Aliados, mas com todos os envolvidos. Munhoz esclarece este fato de maneira direta ao elaborar parte da argumentação usada pelos ortodoxos: “[...] com os bombardeios atômicos, evitou-se a necessidade da invasão do Japão que custaria a vida de mais de 500 mil jovens estadunidenses e um milhão de militares e civis japoneses.” (MUNHOZ. 2015. p.12)”.

Logo, foram poupados não só estadunidenses como também japoneses no processo. Todavia, a bomba atômica também se justifica sob o argumento revanchista, como aborda Munhoz: “[...]a sociedade estadunidense fora impactada pelo ataque japonês e acreditava, estimulada pela propaganda desenvolvida durante os anos de conflito, na necessidade de punir severamente o Japão pela agressão cometida.” (MUNHOZ, 2015. p.6).

Em contrapartida, a historiografia revisionista revisita o mesmo fato a partir de outras lentes. Para os revisionistas as bombas atômicas foram um ato de crueldade desnecessária, primeiro porque pouco teriam impactado sobre a rendição japonesa, segundo, porque foram uma jogada calculada já no vislumbre da guerra fria e não pensando no fim da Segunda Guerra Mundial.

Dentro do primeiro ponto apresentado, temos o historiador Tsuyoshi Hasegawa (2005) que afirma que a rendição incondicional nipônica tem relação direta com a possibilidade de invasão da Manchúria pelo exército soviético. Hasegawa afirma que esta questão age de duas formas, uma por proporcional o medo que a destruição soviética traria sobre os japoneses e outra pelos Estados Unidos que não queriam que isso ocorresse, para evitar uma posição divisão do território japonês com a URSS. Os Estados Unidos buscavam ser o único ativo responsável pela rendição japonesa.

Sidnei Munhoz (2015. p.12), corrobora com esse argumento ao afirmar que os próprios japoneses já haviam buscado os soviéticos para discutir uma rendição. O plano não teria dado certo, pois Stalin desejava a rendição incondicional, não tendo interesse em discutir termos. Gar Alperovitz(1985), também, argumenta da não necessidade da bomba atômica ao analisar o comando militar estadunidense. Nesta avaliação a própria elite militar não só desconsiderava a necessidade da participação soviética no desfecho, como a não necessidade de uma invasão direta, sendo possível encerrar o conflito apenas com o embargo a ilha japonesa. Entretanto, os preceitos éticos e humanos da “bomba salvadora” ainda permanecem, uma vez que a invasão ainda poderia ser uma eventualidade desastrosa.

Todavia, tais preceitos encontram percalço em dois fatores. Primeiro, uma única bomba atômica não teria sido o suficiente para demonstrar poder bélico e levar o Japão a se render? Segundo, a escolha dos alvos ocorreu de forma arbitrária, não há grandes indícios que Hiroshima ou Nagasaki tenham sido pontos estratégicos militares. Nagasaki, inclusive, era uma zona montanhosa e rural, algo que explica o menor número de baixas na segunda bomba atômica, mesmo que sua potência tenha sido maior.

 

Um documentário feito em sequência aos bombardeios atômicos de 1945, confiscado e publicado décadas depois pelo governo estadunidense colabora com isso. De acordo com The effects of the atomic bomb in Hiroshima and Nagasaki (1945), 80% das comunicações de Hiroshima não estavam em funcionamento após a explosão atômica. Hasegawa (2005. p.184) ilustra que para a cúpula da política japonesa a bomba atômica teria chegado apenas como “uma nova arma de destruição”, sem muitos detalhes.

Desta forma, com um intervalo de três dias entre os bombardeios, não é sensato crer que o governo japonês teve tempo suficiente de assimilar o ocorrido e emitir uma resposta adequada. A segunda bomba atômica, não só teria sido igualmente desnecessária como ainda mais cruel, ao consideramos que se nem o governo japonês tinha ideia da dimensão do poder atômico, quem dirá a população. Munhoz considera, ainda, a repercussão da possibilidade atômica pela alta cúpula militar estadunidense, demonstrando como altas patentes não consideravam a necessidade dos bombardeios. Nomeando-os em sequência:

 

“[...]os generais George C. Marshall, comandante das Forças Armadas dos EUA; Dwight Eisenhower, comandante das forças aliadas na Europa; Douglas MacArthur, comandante das forças dos EUA no Pacífico; almirante Ernst J. King, comandante da frota naval dos EUA; almirante Chester W. Nimitz, comandante da frota dos EUA no Pacífico, e o general Henry Harley “Hap” Arnold, comandante da Força Aérea dos EUA.” (MUNHOZ, 2015. p.13)

 

Entretanto, volta-se ao grande receio do governo estadunidense: a eventual participação da União Soviética na partilha do Japão. Parte deste corpo militar acreditava que as novas armas deveriam ser aplicadas contra alvos militares primeiro, algo que não condiz com os alvos dos bombardeios atômicos de 6 e 9 de agosto. Interlocutores militares afirmavam que era possível colocar fim ao conflito apenas com embargo a ilha japonesa, como afirmou Alperovitz em seu artigo “Did America had to drop de bomb? Not to end the war, but Truman wanted to intimidate the Russians” (1985). Soma-se a esse relato, o de Bagguley(1969) afirmando que o General Marshal expressou que a invasão da Manchúria pelo exército soviético já seria um fator decisivo para a capitulação japonesa. Entretanto, com o fim dos combates contra nazistas na Europa, grande parte dos “peritos militares haviam concluído que a intervenção soviética na Manchúria não era mais necessária” (BAGGULEY, 1969, p.140)

Todavia, a narrativa ortodoxa não busca apenas justificar os artefatos atômicos por sua utilidade prática na guerra, ela faz parte do esforço do governo estadunidense em se aproximar do Estado japonês no pós-guerra. Transformando a ilha nipônica em um ponto estratégico na geopolítica da eventual Guerra Fria (PASTRELLO, 2020). Deste modo, obtêm-se que as bombas atômicas foram utilizadas para alavancar uma vantagem política no pós-guerra, evitando a partilha japonesa com os soviéticos.

A corrente ortodoxa é fortemente abraçada pela historiografia ocidental, mas, partindo para a corrente neo-ortodoxa que surge em meio as críticas revisionistas, há inclusive um historiador nipônico, Sadao Asada. Asada argumenta que as bombas atômicas foram necessárias para que os “moderados” do conselho de guerra pendessem para a rendição.

A decisão da rendição ao ser deliberada no conselho de guerra teve um empate entre os seis agentes envolvidos. O imperador sacramenta a decisão final a favor da rendição, selando seu papel como grande salvador do povo japonês. Ironicamente o Imperador só deliberava na assembleia em caso de empate.

Em outro caso, Robert James Maddox, de acordo com Munhoz, afirma que conseguir a rendição do Japão com poucas casualidades sem a bomba atômica seria um mito. Muito embora suas perspectivas de “200 mil mortes” pareçam otimistas frente as “500 mil” defendidas pelo governo Truman. Além de criticar esse “mito”, Maddox aponta que as evidências apontadas por Alperovitz foram desvirtuadas e descontextualizadas (MUNHOZ, 2015. p.16).

Já o historiador Michael Bess faz uma comparação direta entre os bombardeios atômicos e os bombardeios “regulares” que tomavam as cidades japonesas durante a guerra. Para o autor, o nível de morte e destruição entre eles é semelhante. Embora ele reconheça os efeitos a longo prazo da radiação, ainda não seria possível uma comparação honesta, já que, de acordo com Munhoz, não há tempo hábil para uma resposta de defesa frente aos bombardeios atômicos.

Michael Bess defende a leitura histórica de que a bomba atômica teria salvado vidas, da mesma maneira que historiadores ortodoxos. Em sua argumentação, Bess afirma que o Japão possuía um intenso treinamento de milícias, tendo incrementado o efetivo de defesa da ilha de 150mil para 545 mil em Kyushu, e que uma invasão direta à ilha resultaria em uma eminente catástrofe de mortes (Ibid. p.18). Cita, ainda, os números de baixas ocorridos na tomada das ilhas das Filipinas, demonstrando altíssimo índice de fatalidades entre civis e soldados nipônicos.

Mesmo afirmando que os bombardeios nucleares tornaram a rendição mais factível para o kokutai(palavra que se refere a estrutura de governo), Bess não nega o medo da invasão soviética como um fator, também, determinante. Todavia, assim como os historiadores ortodoxos, credita ao bombardeio atômico a rendição e as vidas poupadas por um eventual invasão a ilha japonesa. Ele argumenta que caso o embargo a ilha fosse feito, ao contrário da elite americana estadunidense, haveria “o risco de fome e morte generalizada” (MUNHOZ. 2015. p.19).

Todavia, torna-se preciso compreender se o fanatismo japonês é de fato a pedra de toque que causaria todas as mortes por meio de sua resistência. Assim, podemos apresentar os relatos trazidos por Yoshikuni Igarashi (2011), que ajudam a desconstruir essa narrativa dos japoneses fanáticos por completo. Em um destes relatos, ele narra a história do fotografo Kikujiro Fukushima. Fukushima era um crente fiel no poder do Império japonês e desejava seguir a honra em prol do Estado. Entretanto, durante seu alistamento, que ocorreu contrário a uma recomendação médica devido um problema no fígado, ele vivenciou questões que o tiraram do transe da honra:


Meu estômago, enfraquecido até o limite, rejeitava as comidas dos militares que continham feijões de soja [...] o que eu comia permanecia na forma original – e sujava minhas calças quando estava em sessões de treinamento [...]. Contudo, os poucos soldados que foram devagar nas suas ações e memorizações continuaram sendo punidos (como tinha acontecido desde o começo do recrutamento). Três deles escaparam uma noite: um deles foi encontrado como um cadáver mutilado atropelado por um trem, enquanto outros dois foram içados do poço do complexo militar, inchados como bolas de borracha. Os oficiais e líderes do pelotão que correram até a cena, ficaram chutando os corpos até que as barrigas estouraram e os órgãos internos saíram, enquanto ficavam gritando: “Seus traidores” (KIKUJIRO apud IGARASHI, 2011, p.132).

 

Ao vivenciar a violência do Estado japonês em primeira mão, Kikujiro percebeu o quão ingênuo era sua crença. Sabe-se, também, que não era um mero caso isolado. Keiji Nakazawa(famoso Mangaka responsável por “Gen pés descalços”), relatou como sua família foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial por seu pai ser contrário a guerra (GLEASON, 2003).

Em seu relato, Nakazawa descreve a perseguição sofrida por sua família, na cidade, na escola e na vizinhança por conta dos posicionamentos de seu pai que afirmava que os militares iriam destruir o país. Em uma de suas entrevistas (Ibid), o mangaká fala sobre seu tio Miyake Yoshio que participou dos ataques a Pearl Harbor e ao voltar para casa conversou com pai de Nakazawa, afirmando que ele estava certo em afirmar que o Japão não poderia ganhar a guerra.

Igarashi, ainda, argumenta que o desgaste causado pelo conflito na sociedade era tão grande que a maior parte dos japoneses almejavam o fim do conflito. O historiador descreve como casas de banho que abriam em dias intercalados abrem suas portas, cidades fizeram um “show de luzes” e como japoneses comemoraram em festas clandestinas portando itens de luxo que eram proibidos ao descobrirem que a guerra acabara (IGARASHI, 2011. p.134). Desta forma, percebemos como há uma clara linha de raciocínio que permite questionar a crença do “fanatismo generalizado” sobre essa suposta nação formada de milicias fanáticas e altamente treinadas prontas para lutar até o último suspiro do último homem.

Todavia, há duas certezas expressas em documentos oficiais do Estado japonês: o Japão já havia manifestado uma rendição em seus próprios termos e um manuscrito nipônico colocava a rendição como consequência da invasão soviética sem sequer mencionar a bomba atômica (HASEGAWA, 2005. p.250). Os dados e análises feitos por Michael Bess mesmo que corretos não foram manifestados pelos japoneses, não em relação ao embargo ou combate com os Estados Unidos pelo menos. Assim, a narrativa ortodoxa e neo-ortodoxa buscam justificar as bombas atômicas no contexto político da Guerra-Fria e eximir os Estados Unidos de um possível crime de guerra.

 

Considerações finais

Ao longo deste ensaio foi elucidado a criação do acontecimento em torno dos bombardeios atômicos e as ramificações práticas na historiografia deste evento. Denotamos a cada corrente historiográfica seus próprios argumentos e entendimentos, assim como cada uma destas rebate a outra. Essa dicotomia se insere no presente e se estende em círculos sociais, políticos e culturais, sendo considerado um assunto tabu em muitos desses lugares.

Não é sensato crer que essa disputa será cessada em breve. Sua incorrência no tempo presente se dá justamente porque há uma memória viva que representam ambas as correntes históricos que se debruçam a ler o acontecimento.

Os últimos veteranos de combate da Segunda Guerra Mundial e os últimos sobreviventes dos bombardeios atômicos falecerão neste século. Todavia, a disputa pelos lugares de memória não cessará já que se tratam, também, de uma disputa política pelo protagonismo histórico por parte do Estado estadunidense.

Como afirma Norá(1989), a história do tempo presente não se trata necessariamente da proximidade temporal dos fatos, mas sim de sua relevância no presente. Está relevância encontra-se na percepção destas narrativas sobre o “acontecimento” enquanto lugares de memória. Em contrapartida se torna necessário esse debate de forma ampla e aberta como forma de se evitar o esquecimento do horror atômico.

Por fim, uma pesquisa promovida pela emissora NHK e desenvolvida por Kobayashi Toshiyuki(2007) revela a diminuição do interesse ao longo do tempo no assunto. Grande parte dos entrevistados já não leva em consideração a experiência dos sobreviventes na educação sobre o perigo atômico, e como 1 a cada 4 residentes de Hiroshima não sabe a data do bombardeio atômico, por exemplo.

Entretanto, não é de fácil sustentação se evitar esse esquecimento, para Hasegawa (2005) seria preciso que o Japão confrontasse seus próprios fantasmas do passado para exigir a exumação dos bombardeios atômicos. A única forma de se evitar o esquecimento é trazendo a luz todos os problemas em torno da Segunda Guerra Mundial, assim como os desdobramentos do conflito na Guerra Fria.

 

Referências

Douglas Pastrello é mestre em História Política pela Universidade Estadual de Maringá, atualmente doutorando no programa de Historia Política da mesma universidade, com ênfase em pesquisa no Japão contemporâneo e cinema.

ALPEROVITZ, Gar. Did we have to drop the bomb?. Washington Post. 1985. Disponível online. Último acesso em 28/11/2018. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/archive/opinions/1985/08/04/did-america-have-to-drop-the-bombnot-to-end-the-war-but-truman-wanted-to-intimidate-russia/46105dff-8594-4f6c-b6d7-ef1b6cb6530d/?utm_term=.587bf4e461d7

BAGGULEY, John. A guerra mundial e a guerra fria. In: Horowitz, David (org.). Revolução e Repressão. Rio de Janeiro, Editora Zahar, 1969. P.90-148.

BESS, Michael. Choices under fire: moral dimensions of world war II. 2008.

GLEASON, Alan. Keiji Nakazawa Interview. The Comics Journal. Disponível online em: http://www.tcj.com/keiji-nakazawa-interview/. Último acesso em: 10 de dezembro de 2020.

IGARASHI, Yoshikuni. Corpos da memória: Narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945-1970) Tradução deMarco Souza e Marcela Canizo. São Paulo: Annablume, 2011.

HASEGAWA, Tsuyoshi. Racing the enemy: Stalin, Truman and the surrender of Japan. Cambridge: the belknap press of harvard university press. 2005.

MUNHOZ, Sidnei. Os EUA e a conclusão da II Guerra Mundial: os impasses concernentes à Guerra do Pacífico e ao extremo oriente. Huellas de Estados Unidos. Nº9. 2015. p.5-23

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28 .

NORA, Pierre. O acontecimento e o historiador do presente. In: LE GOFF, J. et alii. A Nova História. Lisboa: Edições de 70, 1989.

NORA, Pierre. O retorno do Fato. In: LE GOFF, J. & NORA, P. (org). História: Novos Problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

PASTRELLO, Douglas T. Fragmentos da dor – a memória e o pós-guerra japonês a partir do filme Rapsódia em agosto (1991). 122 fls. Dissertação (Mestrado em História Política). Universidade Estadual de Maringá: Maringá. 2020.

TOSHIYUKI, Kobayashi. Fading memories of the atomic bomb and growing fears of Nuclear War. Tóquio: NHK Broadcasting studies. N.5. 2007. Disponível online em: https://www.nhk.or.jp/bunken/english/reports/pdf/06-07_no5_10.pdf. Último acesso: 24/03/2020.

27 comentários:

  1. Olá Douglas!

    Quase oito décadas se passaram desde que os EUA soltaram as bombas atômicas sobre o Japão, mas o debate sobre a moralidade da decisão de Harry S. Truman ainda não arrefeceu. Será que terminar a guerra do Pacífico justificava a obliteração de entre 100 e 200 mil vidas em Hiroshima e Nagasaki?

    Em sua pesquisa, você chegou a trabalhar de que forma o cinema, tanto americano quanto japonês, trata tal questão?

    Grato pela atenção.

    Saudações!

    Willian Spengler

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    1. Bom dia, Willian, obrigado pela participação. Há uma diferença gigantesca no cinema da questão entre os dois países. Nos EUA há uma glorificação da narrativa ortodoxa, do sacrificio das tropas estadunidenses e todo o "peso emocional" da guerra na pátria. Essa narrativa é extremamente presente e recebe apoio inclusive do Estado estadunisense que oferece réplicas militares para filmagens dos filmes que seguem essa lógica, tornando não só uma questão política, mas lucrativa. No Japão o tema não é mencionado com frequência, pelo menos não diretamente. Quando aparece ele frequentemente é apresentado por três vias: a crise do pós-guerra e o sofrimento da população civil nesse momento, a crise do pós-guerra e a reestruturação do Japão em pedaços e pela via da memória em décadas mais recentes demonstrando como essa é uma ferida aberta, dolorida e ainda não cicatrizada. No cinema japonês, filmes como Rapsódia em Agosto(1991) de Akira Kurosawa, por exemplo, retratam bem o peso dessa memória e como não há um pleno reconhecimento da dor e destruição causada pela bomba atômica.

      Douglas Pastrello

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  2. Quais tipos de fontes Douglas Pastrello você utilizou para fundamentar sua pesquisa ? Assina Francielcio Silva da Costa.

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    1. Bom dia, Francielcio, obrigado pela participação. Minha pesquisa se trata principalmente da memória japonesa no pós-guerra, logo esse é um tema relevante para compreender a formulação desta. Minhas principais fontes são os filmes sobre o assunto feitos por japoneses, em especial os animes Túmulo de Vagalumes e Gen pés descalços, tal como o filme "Rapsódia em Agosto" de Akira Kurosawa.

      Douglas Pastrello

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  3. Nessa disputa por narrativas, qual o papel desempenhado pelo imperador e em que lugar ficam tradições?
    Victor Vidal

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    1. Bom dia, Victor, obrigado pela participação. O papel que o imperador tem nesse desfecho é apaziguador e de manutenção da "tradição japonesa", preservou-se o Imperador por interesses políticos dos EUA que o usaram para manter a unicidade do povo nipônico sobre os novos valores permutados no pós-guerra. Fez-se do Imperador um arauto desse novo Japão, um membro do povo e não mais uma divindade. Creditou-se, ainda, que ele foi o principal responsável pelo fim da guerra, que fez pensando em seu povo. Apesar do Imperador ter sido mantido tornou-se um cargo simbólico, assim como as tradições japonesas que foram mantidas, mas ganharam novos significados que de certa forma ao mesmo tempo que conectam o Japão de hoje com o Japão de antes, também os separam ao possuirem significados diferentes. Espero ter respondido.
      Obrigado.
      Att. Douglas

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  4. Prezado Douglas Pastrello,
    Primeiramente parabenizo pelo texto apresentado e pela discussão que o mesmo suscita.
    Sou professor da Educação Básica e o tema Segunda Guerra Mundial sempre está no horizonte dos estudantes. Inserido neste tema, as bombas atômicas sobre o Japão fazem surgir várias perguntas e questionamentos entre os estudantes. Infelizmente, os livros didáticos apenas mencionam a hecatombe gerada com as duas bombas atômicas, ficam num texto normalmente restrito e factual, demonstrando o poderia bélico dos Estados Unidos da América. Seu texto nos proporciona oferecer outras interpretações para o ocorrido. Nos possibilita questionar as narrativas existentes sobre as pretensas necessidades dos aliados (leia-se EUA) em lançar as bombas para encerrar o conflito (que já estava praticamente concluído). Minha questão é sobre a possibilidade de materiais ilustrativos que possam contribuir para realizar tais discussões com estudantes do Ensino Fundamental Séries Finais. Pergunto: você teria como indicar filmes sobre a temática da bomba atômica sobre o Japão? Outros materiais como Histórias em Quadrinhos, conheço O mangá "Gen Pés Descalços', que aborda os efeitos da bomba atômica no Japão, mas você teria como indicar outros materiais que possam ser utilizados em sala de aula? Desde já, agradeço pela atenção dedicada.

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    1. Bom dia, professor Fabian, obrigado pela participação. Acredito que é possível trabalhar essa questão com dois animes que frequentemente uso na sala de aula. O primeiro "gen pés descalços" baseado no manga mencionado pelo sr. e o anime "Túmulo de Vagalumes". Ambos fazem um trabalho fenomenal na desconstrução desse "Japão sanguinario e violento" e estão disponíveis de forma dublada e gratuita no youtube. Acredito que a melhor forma de trabalhar no ensino fundamental esse assunto é através de animes como esses. Os mangas do gen pés descalços, especificamente o primeiro volume, podem ser utilizados para demonstrar o horror atômico de uma forma menos violenta e ainda interessante para os alunos. Para se quesitonar o pedestal moral que os EUA se inseriram, há também trechos da série "Terror Infamy" da PrimeVideo que em vários momentos retratam os campos de concentração que nipo-americanos ficaram nos Estados Unidos durante a guerra.

      Douglas Pastrello

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  5. Gleidson Fernando Rocha dos Santos4 de outubro de 2021 às 15:40

    A narrativa estadunidense de "salvador da pátria" tem sido a vitoriosa até o momento, tanto que aqueles historiadores que a questionam são chamados de revisionistas, esta denominação por si só carrega um peso de deslegitimação. Em particular concordo com os revisionistas e acho um absurdo os estadunidenses não responderem por este crime contra a humanidade, mas enquanto forem a maior potência bélica e economica do mundo é dificil isto mudar, pois colocam estes poderes a serviço do controle ideológico com sua narrativa. Bem, indo a pergunta, me parece que o fator determintante para o lançamento das bombas foi realmente o medo da influência soviética, não concorda? O embargo econômico ao Japão me parece que não foi levado a frente como solução norte americana, pois poderia jogar o Japão nos braços dos soviéticos, então nos cálculos estadunidenses a morte de algumas centenas de vidas japonesas pelas bombas atomicas valia muito a pena.

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    1. Gleidson Fernando Rocha dos Santos6 de outubro de 2021 às 16:49

      Errata: no final quis dizer: a morte de centena de milhares de vidas e não apenas centenas.

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    2. Obrigado pela participação, Gleidson. Acredito que sim, minha visão é que bomba atômica tem uma função dupla: ela não só é o último movimento da Segunda Guerra, como o primeiro da Guerra Fria. Ao mesmo tempo em que garante controle do Japão para os Estados Unidos, ela também serve como aviso a potência soviética sobre o poder bélico e tecnologico do "ocidente capitalista". Argumenta-se, inclusive, que a escolha dos alvos como Hiroshima/Nagasaki se deve, também, a integridade que as cidades tinham no momento, assim seria possível verificar com mais propriedade a destruição causada, servindo como um terceiro proposito: um teste empírico da arma.

      Douglas Pastrello

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  6. Estimado Douglas Pastrello em primeiro lugar parabéns pelo ensaio, no texto fica evidente as relações de poder que se perpetuam no cenário político internacional, Além de abrir margens para outras vertentes historiográficas, enriquecendo ainda mais sua pesquisa.
    Pergunta: Por que os japoneses residentes em Hiroshima estão dando margem ao esquecimento desse acontecimento, ao invés de rememorá-los ? enfrentar e debater esse fantasma para que não possa se repetir,Grato: assinado Edevanilson Facundes Da Silva

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    1. Obrigado pela participação, Edevanilson. Acredito principalmente que esse esquecimento possui duas raizes: a primeira é a propria cultura japonesa que prioriza uma visão mais presentista e de superação, algo ilustrado por Shuichi Kato no provérbio "Deixa a água levar". Desta forma muitos japoneses sentem que falar sobre o assunto perturba a ordem emocional e social, promovendo assim o "tatemae", guardando a dor para si a fim de não causar transtorno e incomodo. A segunda raiz reside no fato de que o Japão se tornou um grande aliado dos EUA e politicamente não de muito interesse questionar essa aliança tocando nas feridas do passado que consequentemente podem trazer a tona os crimes cometidos pelo proprio Japão no século XX(especialmente na china e na coreia), assim o assunto se tornou um grande tabu e frequentemente é desconversado. Entretanto, há um grande esforço dos hibakushas(sobreviventes das bombas) de rememorar o passado e externalizar essa dor.

      Douglas Pastrello

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  7. Oi Douglas, muito interessante seu texto. As disputas de narrativa em torno da Guerra que te sido levantadas pelos setores mais conservadores japoneses, de alguma forma dialogam com esse embate historiográfico?
    Att,
    Janaina de Paula do Espírito Santo.

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    1. Obrigado, Janaina, pela participação.

      Admito que a política conservadora japonesa atual não é algo que conheça profundamente, mas poderia fazer alguns apontamentos. Os setores mais conservadores tendem a evitar o assunto por dois motivos: é um assunto delicado no leste asiático devido ao mal causado pelo Império Japonês e por que o Japão tem sido um aliado próximo dos Estados Unidos, logo desenterrar esse assunto não é o ideal para essa aliança. Parte da política conservadores parece, também, caminhar entre um negacionismo das atrocidades do Império Japonês e outra apenas enterrar esse passado incomodo e seguir adiante.

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  8. Olá Douglas, parabéns pelo texto e pela excelente pesquisa. Tenho duas perguntas:

    1) À luz da necessidade ou não das bombas, como ortodoxos, neo-ortodoxos e revisionistas interpretam o papel da Batalha de Midway (1942) como fator decisivo para a inevitável derrota do Japão na Segunda Guerra, considerando as profundas perdas sofridas pelas forças japonesas durante o episódio?

    2) Na sua opinião, a dificuldade do Japão de reconhecer e expiar seus próprios crimes de guerra é um fator que dificulta o processo de apaziguamento do debate sobre as bombas?

    Forte abraço,

    Lucas Camara Gibson

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    1. Obrigado pela Participação, Lucas.

      1 - Ao fim das batalhas no pacifico, especialmente em 1945, já havia um sentimento de que o Japão perderia a guerra. A propaganda nacionalista não cessou em momento algum, continuou a publicar sobre o eventual triunfo japonês, a grandeza do império. Entretanto, na camada civil a medida que a guerra avançava entre 42-45 a crise causada pela escassez de recursos, ausência de verdadeiras boas notícias nos jornais e rádios, criava-se um sentimento derrotista. Em 1945 grande parte da camada civil esperava apenas que a guerra acabasse para que a crise pudesse ser superada, independente de uma vitória ou derrota. Agora, sob a ótica militar as primeiras derrotas de 1942 não foram tão chocantes uma vez que o Japão estava a quase uma década inteira apenas vencendo batalhas, mas a medida que a guerra do pacifico se aproxima da ilha japonesa a confiança militar nipônica vai se estremecendo até o ponto de um medo completo de serem aniquilados com a eventual e possivel invasão soviética - motivadora final da rendição.

      2 - Com certeza, não creio que há uma falsa equivalência entre os crimes de guerra do Império japonês e a bomba atômica. Mas, para que o Japão possa cobrar reparações sobre a bomba atômica é preciso expiar seus próprios fantasmas, especialmente os relativos as mulheres de conforto na Coréia e na China, um assunto extremamente tabu e traumático até os dias de hoje.

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    2. Obrigado pelas respostas atenciosas!

      Abs,
      Lucas Camara Gibson

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  9. Bom dia Douglas e participantes do debate, primeiramente achei o artigo muito pertinente e claro no desenvolvimento de tão complexo tópico que suscita debates fora do Japão a partir de diferentes perspectivas (históricas, tecno-cientificas, geopolíticas etc). Prova disso são os importantes questionamentos acima. Gostaria apenas aqui de apresentar um ponto: seria interessante acrescentar na discussão o impacto da sangrenta Batalha de Okinawa (abril-junho de 1945) como um fator importantíssimo nas tomadas de decisões por parte do governo norte-Americano e do governo japonês sobre os acontecimentos de julho/agosto de 1945. Também indico uma obra importante no âmbito literário sobre o episódio: “Hiroshima notes” do escritor Kenzaburo Oe. E para finalizar uma constatação empírica: sou professor universitário aqui no Japão desde 2010 e sempre que este tema é levantado (por mim) durante as aulas, há um misto de “indiferença, pesar e surpresa” por parte dos jovens japoneses que conhecem a história (muitos tiveram parentes mortos em Hiroshima ou Nagasaki), mas que tem uma grande dificuldade em expressar suas opiniões sobre temáticas associadas ao Império Japonês nas décadas de 1930-40. Praticamente não se debate ou ensina isso nas escolas sob uma perspectiva crítica, ou seja, um artigo como o seu vai (em muitos aspectos) seria muito bem vindo aqui. Um abraço,

    Rogério Akiti Dezem

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    1. Muito obrigado pelas indicações, professor Rogério. De fato introduzir nesta temática o peso que as batalhas finais de 1945 tiveram na tomada de decisão seja uma ótima ideia. Em minha pesquisa sempre parti pelo lado civil, aquele representado pelo silenciamento da memória e pela dor. Acredito, inclusive, que as ações de seus alunos durante as temáticas se devem justamente a esse silenciamento da memória e como a própria cultura japonesa não gosta de revirar o passado, algo que Shuichi Kato apresenta com o provérbio "deixa a água levar". Você como inserido na cultural japonesa com certeza pode falar com mais propriedade sobre o assunto, mas a visão que minha pesquisa sobre memória me apresentou é de que muitos não gostam de comentar para não perturbar a ordem, o tatemae, e outros preferem deixar o passado no passado. Muito obrigado pela participação.

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    2. Boa noite, Douglas. Obrigado por responder a minha observação. Complementando, quando o assunto é “debatido” aqui o eixo condutor varia de um “silêncio quase velado” para um sentimento de “vitimização”, os poucos acadêmicos que tentam abrir o debate a partir de leituras e teses diferentes são criticados ferozmente pelos grupos de nacionalistas (cuja culpa sempre foi e será dos EUA, China, Rússia e até…Coreias!). Enfim…Bom trabalho aí!

      Rogério Akiti Dezem

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  10. Errata: “ um artigo como o seu (em muitos aspectos) seria muito bem-vindo por aqui.”

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  11. Gostei muito do seu texto Douglas! Com relação a resistência japonesa, foram encontrados documentos ou testemunhos de autoridades militares e políticas japonesas confirmando que eles tinham planos concretos de rechaçar a iminente invasão americana?
    Obrigado, Luís Cláudio Muniz Miguel.

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    1. Bom dia, Luís, da minha parte não encontrei. Encontrei relatos sobre poucos militares da alta cúpula disposto a grandes sacrificios, sim. Entretanto, nas camadas mais baixas e nas civis os relatos eram de desânimo, medo, ansiedade e depressão devido a crise nos momentos finais da Segunda Guerra. Desta forma, muitos acreditam que o Japão eventualmente se renderia pelas camadas mais baixas, a grande maioria ja estava em descrença com a cultura da honra perpetuada no ínicio do século XX e almejava o fim da guerra, independente do resultado. Os relatos mencionados no texto, relativos ao medo da invasão soviética, ja demonstram isso, também: grande parte já sabia do desfecho inevitavel da guerra, queriam apenas proporcionar o melhor acordo possivel e preservar a "kokutai"(estrutura de governo) imperial.

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  12. Parabéns pelo texto Douglas! Achei ótima sua exposição - de forma concisa e clara - das duas visões, pois falar especificamente sobre esse episódio da guerra, tão debatido, é realmente um desafio e tanto.

    Sobre o conteúdo, achei interessante passar sobre essas duas "teorias", pois meu único contato com esse tema, até agora, foi o livro "A história secreta da rendição japonesa de 1945" do Lester Brooks. É um livro ótimo mas tem um viés mais descritivo, somente abordando realmente como foi o horror dos dias que se seguiram após a Declaração de Potsdam.

    Acredito que meu comentário é mais reflexivo, já que as perguntas dos outros participantes e suas respectivas respostas me ajudaram a sanar as dúvidas. Assim, sempre me chamou atenção o fanatismo japonês que levou aos episódios de miséria da guerra... Pois fica claro quem eram os homens mais poderosos do Império na época, como o Ministro da Guerra Korechika Anami e o Chefe do Estado-Maior do Exército Yoshijiro Umezu. Lembro que no livro, Brooks explica como o choque com a Declaração de Potsdam acabou por pavimentar o caminho para o lançamento das bombas. Desse modo, é importante destacar a "implicância" dos setores do exércitos em aceitar os termos da Declaração (que poderiam ter salvado a população de Hiroshima da primeira bomba) e também as explicações científicas do Professor Asada e de Yoshio Nishima.

    Entre as incontáveis reuniões do SCG (Supremo Conselho de Guerra) e as fúteis discussões que não chegavam a lugar algum, não consigo imaginar a indignação dos membros pacifistas quando as notícias chegaram. De acordo com Brooks, o Ministro do Exterior - que apoiava imediatamente o fim da guerra, assim como Hirohito -, Shigenori Togo, fervia de frustração na sala de reuniões do SCG quando a notícia de que Nagasaki havia sido bombardeada na mesma manhã acabava de chegar. Togo havia tentado reunir todos os representantes do SCG no dia 8 - para discutir o fim do massacre - mas de acordo com um dos secretários, nenhum deles estava "disponível". Pessoalmente não sei qual seria minha reação diante de uma catástrofe que poderia ter sido evitada com apenas a colaboração desses conselheiros.

    Será que eles nunca estiveram disponíveis para entender a dor e sofrimento do povo? Nunca se contentaram com os fatos expostos pelos secretários e pelo ministro do Exterior a respeito das fatalidades? Ou a seguir as ordens do Imperador-deus que juraram lealdade até a morte?

    Nunca saberemos, mas os registros estão vivos para aqueles que lutaram até o fim pelo bem mundial dentro e fora do governo Imperial.

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