Bruno Marques

 ALÉM DO GRANDE TIMONEIRO: OUTRAS VOZES NA LIDERANÇA DA CHINA COMUNISTA ENTRE A REVOLUÇÃO E A MORTE DE MAO TSÉ-TUNG (1949-1976)

 

A figura de Mao Tsé-tung como o “Grande Timoneiro”, o grande líder, costuma concentrar quase todas as atenções quando se trata do regime comunista implantado na China. Muitos textos caracterizam Mao como incontestável e praticamente único sujeito das ações. Vide, por exemplo, a quantidade de frases com que Henry Kissinger em Sobre a China inicia justamente com seu nome seguido de algum verbo. “Mao delineou”, “Mao dividiu”, “Mao lidou”, “Mao gerou”. Ou de expressões como “estratégias de Mao”, “visão de Mao”, “filosofia de Mao”. Uma leitura na qual Mao foi sempre quem fez ou deixou de fazer, sendo o país um mero reflexo de suas intenções. Seria “a China de Mao” (KISSINGER, 2012, p. 68).

Resta pouca dúvida da proeminência de Mao. No entanto, a ênfase exagerada em seu protagonismo gera a impressão de que ele teve sempre controle absoluto sobre o Partido Comunista Chinês (PCCh), o governo, a sociedade e demais atores, como o Exército de Libertação Popular (ELP). Este artigo busca, porém, destacar a existência de discordâncias internas e de vozes alternativas no alto escalão da China entre 1949 e 1976. Vozes capazes de gerar debates, dissensões e, eventualmente, até obrigar Mao a ceder.

Já no começo dos anos 1950, divergências importantes puderam ser notadas intramuros do PCCh. O Politburo, seu órgão executivo, tinha 14 membros, e cinco deles compunham um órgão paralelo, o Comitê Central: Mao Tsé-tung, Liu Shaoqi, Zhou Enlai, Zhu De e Chen Yun. Não eram meros executores acríticos dos planos de Mao, nem concordavam sempre entre si. Liu e Zhou, especialmente, demonstraram em diferentes ocasiões terem ideias próprias. Compartilhavam do objetivo de promover uma transformação socialista da economia, mas tinham sérias ressalvas, por exemplo, quanto aos aos métodos e prazos relativos à coletivização no campo (XIAO-PLANES, 2010), bem como às restrições ao mercado e à propriedade privada.

Essas diferenças originais sobre a economia – a rigor, sobre o Primeiro Plano Quinquenal – acabaram, inclusive, se mesclando com uma crise de natureza distinta, envolvendo fortes tensões entre o poder central e as autoridades locais.

Nos anos imediatos à revolução de 1949 houvera a implantação de um poder partilhado entre o Governo formalmente constituído, o PCCh e o ELP, dividindo-se a China em seis regiões administrativas (SPENCE, 1990). Cada uma seguia o modelo de divisão tripartite do poder central, tendo um chefe de governo, um primeiro-secretário do partido e um comandante militar. Nesse contexto, alguns líderes regionais mostraram-se especialmente poderosos, casos de Gao Gang, vice-presidente do conselho governamental na região da Manchúria (nordeste do país); Peng Dehuai, comandante militar (noroeste), o também militar Rao Shushi (leste), além de Lin Biao (centro-sul) e Deng Xiaoping (sudeste). Todos seriam futuramente expurgados.

No inverno de 1952 para 1953, várias dessas autoridades locais, foram convocadas a Pequim. De acordo com Spence (1990, p. 524, traduções minhas), “[...] havia problemas perenes embutidos na República Popular. Tensões de autoridades regionais e centrais, de subversão da burocracia e de ambições individuais e bases de poder”. Gao Gang e Rao Shushi atacaram Zhou e Liu por suas posturas cautelosas. Segundo Xiao-Planes (2010, p. 124), Gao viajou pelo interior da China em busca de aliados. Então, Mao, que divergira de Zhou e Liu em relação à economia, reconsiderou sua posição e interveio em prol dos dois. Gao e Rao foram presos, acusados de tentarem tomar o poder.

Em 1954, foram extintos os seis departamentos político-militares em que o país havia sido dividido. “O Exército foi colocado sob um recém-formado Ministério da Defesa subordinado ao Conselho de Estado em Pequim. Para implementar as decisões do partido, a China mudou para um sistema fortemente centralizado, em que secretários provinciais do partido supervisionavam a disseminação da ordem do Comitê Central” (SPENCE, 1990, p. 542).

No que diz respeito à economia, porém, Zhou Enlai e Liu Shaoqi voltariam a manifestar discordâncias com Mao, por exemplo, em abril de 1956. Segundo Teiwes (2001, p. 13), eles argumentaram contra os planos de aumentar os fundos de construção de capital. Apoiado inicialmente por apenas um membro do Politburo, Mao insistiu até seu ponto de vista ser aceito. Zhou, porém, não se deu por convencido, aproximou-se de Mao e reabriu o debate. Apesar de contrariado, Mao cedeu. “Isso mostra que, enquanto Mao foi capaz de impor sua vontade sobre o coletivo, ele também foi persuadível [...]”, diz Teiwes (Ibid., p. 12, traduções minhas).

Quase todos os grandes acontecimentos do período 1949-1976 foram perpassados por choques entre a liderança. A exemplo dos Planos Quinquenais, houve divergências de diferentes líderes com Mao e entre si durante o movimento das Cem Flores, o Grande Salto Adiante, a Revolução Cultural e a aproximação diplomática com os Estados Unidos, entre outros episódios. Mao, Zhou Enlai, Chen Yun, o novo secretário-geral Deng Xiaoping e o general Lin Biao defendiam, por exemplo, relaxar o controle sobre os intelectuais. Já Liu Shaoqi e Zhu De, o general Peng Dehuai e o prefeito de Pequim Peng Zhen insistiam na disciplina. Dessas divisões surgiu o movimento das Cem Flores (SPENCE, 1990, p. 567).

Interessante no episódio, além das dissensões em si, é a constatação de como o domínio de Mao sobre os meios de comunicação era limitado. Durante sua campanha contra a concessão de liberdade aos intelectuais, Peng Zhen tomou o controle dos principais jornais de Pequim. Mao precisou usar sua base de apoio em Xangai para defender publicamente suas posições, algo que ocorreria outras vezes até a Revolução Cultural. Somente em abril de 1957, após meses rodando o país, Mao fez imprensa e órgãos de propaganda balançarem para o seu lado quanto às Cem Flores (Ibid, p. 569).

Ao darem esperanças aos intelectuais, Mao e aliados tentaram limitar o debate em torno de temas como trabalho compulsório e economia, o que logo foi extrapolado. Acusaram-se membros do partido de terem privilégios e violarem direitos humanos. Universitários de Pequim criaram o “Muro Democrático” e o cobriram de críticas. Percebendo o agravamento da situação, Mao foi obrigado a ceder à oposição interna e bandeou para o lado dos dirigentes que Spence definiu como “linha-dura”, que sempre foram contrários às Cem Flores. Mao mudou seu discurso. E, em julho, passou-se a atacar quem criticava o partido.

Outras questões cruciais como a coletivização das terras continuariam como foco de tensões. Em 1957, a produção agrícola foi decepcionante, o volume de grãos disponível aos consumidores urbanos responsáveis pelo crescimento industrial era insatisfatório. Contudo, era difícil extrair mais do campesinato sem usar métodos de coerção. Decisão delicada considerando-se que 70% do partido tinha origem camponesa. Zhou Enlai e Chen Yun defendiam que os camponeses só produziriam mais se recebessem incentivos materiais e oportunidades de comprar bens de consumo (Ibid., p. 574). Mao ignorou ambos, apelando para incentivos morais e campanhas de mobilização de massa sob lideranças locais.

Em julho de 1958 começou uma campanha para extinguir os lotes privados. Cerca de 740 mil cooperativas foram fundidas em 26 mil “comunas populares”. Os autores dos relatórios de produção, porém, não registravam dados verdadeiros, inferiores às cotas estipuladas pelo partido, com medo de serem rotulados como direitistas ou derrotistas. Em dezembro, a maioria dos líderes do PCCh já se recusava a afirmar, ao contrário de Mao, que as comunas marcavam a transição para o comunismo. No início de 1959 algumas já retornavam ao formato de cooperativas e em muitas regiões lotes privados voltaram a ser alocados a famílias.

Mao, então, deixou o comando do Estado. Liu Shaoqi assumiu seu lugar. Mao conservou outras posições, como de presidente do PCCh e da Comissão de Julgamentos Militares, mas é significativo que tenha abdicado de um cargo de tal natureza.

Em julho de 1959, numa conferência, o marechal Peng Dehuai escreveu uma carta privada, com críticas. Mao tomou-a como um ataque à sua liderança, reagiu vazando a carta e lançando uma denúncia contra Dehuai, que acabou removido do posto de Ministro da Defesa. Mao ameaçou ir ao interior da China novamente e liderar os camponeses na derrubada do Estado, caso se insistisse em enfatizar o lado negativo das políticas adotadas. Completou dizendo que se o ELP não o seguisse, organizaria outro Exército de Libertação.

Havia tensão entre PCCh e ELP. “[Os militares] começaram a adquirir novas habilidades técnicas que os quadros comunistas ainda não haviam dominado [...]. Não estava claro que lado iria predominar”, frisa Spence (Ibid., p. 563, tradução minha). Mao chegou a declarar: “Nosso princípio é que o Partido comanda a arma e a arma jamais poderá comandar o Partido” (Ibid., p. 563). Sob essa perspectiva, a vitória sobre Dehuai foi significativa. Ela encorajou Mao a renovar sua confiança nas comunas. O investimento industrial cresceu. Mas o montante de grãos caiu. O resultado foi uma fome em escala gigantesca que matou, estima-se, 20 milhões de pessoas ou mais, entre 1959 e 1962.

A catástrofe teve como consequência o afastamento de Mao da linha de frente do PCCh. Outras figuras tomaram a dianteira. Destaque para o chefe de Estado Liu Shaoqi, o premiê do Conselho de Estado Zhou Enlai e o secretário-geral Deng Xiaoping. E em 1961 iniciou-se uma investigação sobre as reais condições do campo. Momentaneamente fragilizado, Mao concordou em deixar a visão de Chen Yun sobre a economia prevalecer (Ibid., p. 591).

Não é claro o quanto seu recuo representou de perda efetiva de poder. Teiwes (2001, pp. 13-14) argumenta que Mao continuou com a última palavra. Wang (1996, p. 4), ao contrário, sugere que sua perda de poder não foi apenas aparente: “Deng Xiaoping não consultou mais Mao a partir de 1959. Mesmo quando tomou decisões importantes, [Deng] raramente informou [Mao]”. Para Spence (1990, p. 596), a crença no grande líder revolucionário já não era a mesma: “As opiniões divididas que surgiram na liderança da República [...] deixaram Mao se sentindo ameaçado. Liu Shaoqi, Deng Xiaoping, Chen Yun e Zhou Enlai, todos revolucionários veteranos, pareciam cada vez menos compartilhar sua visão de governança através da luta contínua. Na verdade, eles mal pareciam precisar de sua presença ou de sua inspiração”.

De acordo com Lensing (2016, p. 60), Mao foi atacado pela alta cúpula do partido em 1962 e 1963, quando o Comitê Central já incorporara Deng Xiaoping e o ministro da defesa Lin Biao. Os ataques mais duros partiram de Liu Shaoqi. “Liu criticou as políticas do Grande Salto numa conferência com 7 mil partidários, o que, em essência, era criticar Mao. Mais importante, Mao fez uma autocrítica na conferência, [...] o que foi um choque para muitos. [...] O discurso de Liu pegou [Mao] desprevenido e foi apoiado pela maioria dos presentes. [...] A luta interna do partido escalou rapidamente” (Ibid., pp. 60-61, tradução minha).

Em dezembro de 1964, Xiaoping convocou uma conferência do Comitê Central para discutir questões da Campanha de Educação Socialista e sugeriu que Mao não tomasse parte no encontro (WANG, 1996, p. 4). Mao, no entanto, conduziu ativamente a discussão. Na ocasião, porém, Liu Shaoqi interrompeu Mao quando esse começava sua fala. A interrupção enraiveceu Mao. A retomada das rédeas do partido por Mao viria com o apoio de outras forças: Exército, intelectuais radicais e massas populares.

Em 1965, a economia já dava sinais de recuperação. Mas enquanto os planejadores econômicos revertiam os danos do Grande Salto, Mao lutava em outra frente. “Nesse momento de emergência nacional potencial, Mao escolheu esmagar o Estado chinês e o Partido Comunista”, afirma Kissinger (2012, p. 129). Alegava estar chamando uma campanha socialista que colocaria o proletariado contra a burguesia, enquanto Liu e seus amigos desviavam a questão.

A luta por poder no PCCh é uma das explicações da Revolução Cultural (1966-1976). Seu estopim se deu no caso de Wu Han, escritor símbolo da “ideologia burguesa reacionária”, nas palavras de Mao ditas em setembro de 1965. Wang (1996, p. 5) destaca que Wu Han era também vice-prefeito de Pequim. O ataque, portanto, tinha dupla motivação, atingindo intelectuais e rivais políticos. Segundo Lensing (2016, p. 62), Liu, Deng, Peng Zhen e outros se recusaram a criticar Wu Han. “Isso provou que Mao não tinha controle completo sobre o Partido e precisava manobrar cuidadosamente para se livrar dos oponentes. Além do mais, nessa conferência, Peng Zhen fez observações desafiadoras [...]. Disse que ‘todos eram iguais diante da verdade e mesmo Mao poderia ser criticado’” (LENSING, 2016, p. 62, traduções minhas).

Nesse contexto, revelaram-se mais uma vez limites do poder de Mao em relação à imprensa. Ele se irritou com a fraca repercussão de suas críticas a Wu Han nos jornais, os quais eram controlados por seus oponentes de partido (SPENCE, 1996, p. 601).

Peng Zhen foi acusado de conspirar contra Mao. Wu Han e família foram atacados. Os protestos se alastraram. Estudantes se filiaram ao PCCh e foram declarados Guarda Vermelha. Mao inflamou a militância, pediu vigilância contra os que queriam subverter a revolução, apontando publicamente como um erro a tentativa de Liu Shaoqi de frear os protestos (SPENCE, 1990, p. 605). Jovens destruíam edifícios, templos e objetos de arte. Atacavam professores, diretores, autoridades e seus próprios pais. Em agosto, vieram os expurgos no alto escalão: Liu Shaoqi morreria na prisão em 1969; Deng Xiaoping seria redimido em 1973.

A esposa de Mao, Jiang Qing, revelou-se uma das mais radicais, a ponto de contrariar o marido. Em 1967, ela disse que o título de chefe deveria ser esmagado (Ibid, p. 609). Mao respondeu que chefes eram necessários. Buscou-se, enfim, uma acomodação com uma nova estrutura política baseada em comitês compostos por militares, massas e “quadros corretos” do PCCh. Jiang Qing, então, passou a denunciar tendências de “extrema esquerda” e clamar o Exército chefiado por Lin Biao como “campeão da ditadura do proletariado”. “[...] Aqueles que convulsionaram o próprio partido buscavam agora assumir o comando e forçar uma volta à obediência de estudantes e trabalhadores”, resume Spence (Ibid., p. 609). 

O Exército acabou por expandir seu papel, fortalecendo-se diante do partido. Recolocava-se a disputa de poder que se dera nos anos 1950. E o prestígio do ELP aumentou após choques militares na fronteira com a União Soviética (URSS), em 1969. Lin Biao emergia como herói nacional. Enquanto isso, o PCCh seguia convulsionado pela “Campanha para Purificar as Fileiras de Classe”, que, entre 1967 e 1969, perseguiu milhões de militantes suspeitos. Mas, desconfiando de Lin Biao e de como o Exército investigava antigos quadros, Mao buscaria fortalecer novamente o partido (Ibid, p. 616).

Em setembro de 1970 Lin Biao pediu a Mao que fosse nomeado Presidente da República, mas Mao negou: “Foi o primeiro sinal de que Mao se preocupava com o enorme poder adquirido por Lin” (WITKER BARRA, 2018, p. 81). Biao morreria em setembro de 1971 num acidente aéreo, possivelmente abatido enquanto tentava deixar o país. O governo logo divulgaria a versão de que ele planejava um atentado contra Mao. Segundo Spence, Biao fora “um homem que ajudou a reconstruir a autoestima de Mao”, exaltando sua imagem pública como “grande líder”, “Grande Timoneiro”. Fora um dos artífices da Revolução Cultural e, no fim, deu respaldo militar para extirpá-la de seus aspectos populares mais inconvenientes. Acabou acusado como traidor, algo que chocou a população, que o via como herói.

Além de potencial rival, Biao teria caído em desgraça pela sua oposição à aproximação diplomática com os Estados Unidos (EUA) promovida por Mao e Zhou Enlai em meio aos conflitos com a URSS (KISSINGER, 2012, p. 175). O movimento em direção aos EUA, aliás, continuou como ponto de atrito após a morte Biao. Duas facções se formaram como possíveis herdeiras de Mao. De um lado, a Gangue dos Quatro, incluindo Jiang Qing, era avessa à aproximação com os EUA e dominou parte da imprensa, universidades e esfera cultural, difamando a outra facção, mais pragmática, composta por Zhou Enlai e Deng Xiaoping, que relutavam à ideia de “revolução permanente”.

Zhou tivera peso em política externa desde os anos 1950, tendo papel central na construção de uma imagem respeitável da China na comunidade internacional e ajudando a forjar o bloco dos países não-alinhados. “O arquiteto dessa nova política externa [nos anos 1950] foi Zhou Enlai [...]”, afirma Spence (1990, p. 551). Ele acabou acusado de “direitismo” por Nancy Tang, intérprete que era próxima de Jiang Qing, e por Wang Hairong, sobrinha-neta de Mao. “É concebível que Zhou tenha começado a ver a relação americana como um fato permanente, ao passo que Mao a tratasse como tática passageira”, sugere Kissinger (2012, p. 195).

Já Deng Xiaoping sobreviveu para fazer história. Seu perdão, em 1973, fora alvo das objeções da Gangue dos Quatro. Quando Mao morreu, em 1976, quem herdou de imediato suas posições como presidente do PCCh e da Comissão Militar Central foi Hua Guofeng, alguém que não tinha apoio político de nenhuma das facções em conflito, mas logo optou por se aliar aos pragmáticos. Guofeng e Xiaoping tendiam a concordar sobre política externa, mas a divergir sobre economia. O primeiro defendia “métodos soviéticos” e investimento na indústria pesada. O segundo, produção de bens de consumo, menos intervenção estatal e governo mais descentralizado. “Deng prevaleceu porque havia ao longo das décadas construído ligações dentro do [Partido] e especialmente no [Exército], e porque operou com destreza política muito maior”, diz Kissinger, (2012, p. 212-13).

Por mais que a influência, liderança e ascendência de Mao Tsé-tung sobre o PCCh e o Estado tenham sido enormes, sua voz, portanto, esteve longe de ser única. Essa constatação segue importante para entender um país que desde o fim dos anos 1970 ousou adotar uma política econômica peculiar, de um “socialismo com características chinesas”, justamente sob liderança das vozes dissonantes, o ora expurgado, ora redimido Deng Xiaoping. O país que hoje ressurge como potência é provavelmente bastante mais complexo do que sugerem os relatos comuns, estereotipados, herdeiros de um maoísmo simplista. De alguma forma, o presente da China é, ainda, um legado das complexidades do “tempo de Mao” – que também é o tempo de Gao, Rao, Liu, Zhou, Deng e outros – sem cujo reconhecimento será difícil entendê-la.


Referências

Bruno Marques é graduando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

 

KISSINGER, Henry. Sobre a China [recurso eletrônico]; tradução Cássio de Arantes Leite. - Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. recurso digital, pp. 67-217.

LENSING, Dexter. From Mao to Xi: Chinese Political Leadership and the Craft of Consolidating Power. McNair Scholars Research Journal, Boise State University (United States of America): Vol. 12, Iss. 1, Article 15, 2016, pp. 59-84. Disponível em: https://scholarworks.boisestate.edu/mcnair_journal/vol12/iss1/15. Acesso em: 20 abr. 2021.

SPENCE, Jonathan D. The Search for Modern China. United States of America: W. W. Norton & Company, 1990, 1st ed., pp. 514-617.

TEIWES, Frederick C. Politics at the “Core”: the political circumstances of Mao Zedong, Deng Xiaoping e Jiang Zemin. China Information [s. l.], Vol. 15, N. 1, 2001, 55p. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/160609269.pdf. Acesso em: 20 abr. 2021.

WANG, Shaoguang. Between Destruction and Construction: The First Year of the Cultural Revolution. Department of Political Science, Yale University (United States of America), 1996, 44p. Disponível em: http://www.cuhk.edu.hk/gpa/wang_files/1966.pdf. Acesso em: 20 abr. 2021.

WITKER BARRA, Ivan León. Mare crisium: complots y conspiraciones como mecanismo político para el relevo de cúpulas en los regímenes comunistas. Relaciones Internacionales, Universidad Nacional de La Plata (Argentina), 2018, Vol. 27, Nº 55, pp. 69-88. Disponível em: https://revistas.unlp.edu.ar/RRII-IRI/issue/view/469/Revista%20Completa. Acesso em: 20 abr. 2021.

XIAO-PLANES, Xiaohong. The Pan Hannian Affair and Power Struggles at the top of the CCP (1953-1955). China Perspectives, French Centre for Research for Contemporary China, Hong Kong, N. 4, 2010, pp. 116-27. Versão em inglês de N. Jayaram do original em francês. Disponível em: https://journals.openedition.org/chinaperspectives/5348. Acesso em: 20 abr. 2021.

5 comentários:

  1. Meus parabéns pelo seu trabalho, Bruno. É uma proposta bem interessante e afronta certos paradigmas sobre a China que ainda carregamos.

    Permita-me fazer o contraditório, apenas como modo de provocar uma reflexão. A imagem de que "Mao delineou" construiu seu sentido fora da China por uma razão de ordem burocrática: ela refletia o peso do líder nas decisões de política externa.

    Tomo como exemplo o isolamento deliberado do país durante a Revolução Cultural, quando Mao desafiou a URSS, reeducou o serviço diplomático e fechou suas representações em quase todos os países.

    Mesmo antes, já era notável a personalidade do "Timoneiro" na relação entre Pequim e Moscou. Foi sua a decisão de rechaçar qualquer participação no Pacto de Varsóvia de Stálin, ou a de humilhar Nikita Kruschev no episódio em que determinou que se encontrassem numa piscina. Em todos estes casos estava a disputa pela liderança personalista do socialismo internacional.

    Mesmo com todo o talento de Zhou Enlai, a personalidade de Mao foi, em algumas conjunturas, a tônica das decisões de política externa. Talvez por isso a imagem do "Mao gerou" seja tão arraigada fora da China até hoje, comprometendo as análises sobre o país.

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    1. Olá, Gustavo! Obrigado pelas palavras de incentivo e pelas observações. De fato, é bastante compreensível que tenhamos uma imagem do poder político chinês daquele período muito associada a Mao. Também não tenho dúvidas de que ele foi a figura mais importante, com mais poder de decisão e mais visível pela comunidade internacional.

      Minha intenção foi menos contestar essa posição de protagonista de Mao Tsé-tung e mais chamar atenção para a presença de outros agentes, também com passado revolucionário e capazes de influenciar de forma efetiva ações de governo e decisões do partido, ainda que com possibilidades limitadas de rivalizar com Mao em longo prazo ou, especialmente, no seu enorme apelo junto às massas.

      Igualmente, não tenho dúvidas quanto aos efeitos da personalidade, do carisma e dos traços mais pessoais de Mao nessas relações, como as que você citou, com Stálin e Kruschev. As características muito particulares de Mao certamente deixaram sua marca também aí.

      Contudo, tendo a pensar que outros fatores igualmente importantes podem ter atuado, mesmo em gestos excêntricos como um encontro na piscina. Por mais estranho que pareça, um gesto como esse pode refletir tanto uma personalidade quanto interesses estratégicos nacionais (ainda que expressos de forma não tão convencional). Esses sinais também fazem parte de relações diplomáticas. Essas pequenas humilhações e provocações, esse tensionamento de relações, são típicas de líderes mais personalistas, mas também podem ter uma dimensão de racionalidade e de cálculo, a fim de testar interlocutores. Enfim, considero que também podem representar interesses mais amplos, menos pessoais, de natureza geopolítica, que nem sempre são fáceis de identificar.

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  2. Caro Bruno,
    parabéns por seu texto! Penso que é uma das poucas fontes em português que consegue atentar as disputas políticas que existiam dentro da China, ao contrário da ideia vulgarmente disseminada de uma harmonia de interesses dentro do partido. Gostaria de saber sua opinião sobre como Mao conseguiu, contudo, articular sua sobrevivência em meio a esse panorama, e de que forma isso modificou o panorama do comunismo chinês em relação a outros países [o autor Gao Mobo defende que essa virada foi crucial para garantir a autenticidade do movimento chinês, dando-lhe sobrevida e segurança]. Saudações, André Bueno.

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    1. Olá, professor André. Fico feliz pelo comentário. Muito obrigado! Bom, pelas minhas leituras e até onde posso vislumbrar, entendo que Mao foi desde a Revolução um personagem central e teve, portanto, condição de manobrar, inclusive nas disputas internas por poder no partido, a partir de uma posição vantajosa. Sua liderança, me parece, ficou, sim, abalada entre os anos que separam os efeitos negativos do Grande Salto Adiante e os expurgos da Revolução Cultural, porém, isso teria sido muito mais entre seus pares do que em termos da sociedade chinesa.

      Acredito que extramuros do PCCh ele conservou sempre uma imagem relativamente positiva e soube ativar esse seu apelo popular contra eventuais adversários, como Liu Shaoqi. Acredito que essa ascendência sobre as massas foi um fator decisivo para que ele voltasse a concentrar mais poder na segunda metade dos anos 1960.

      Quanto à questão do panorama chinês em relação a outros países, tendo a pensar que há outros fatores além da própria “persona” de Mao que podem ter tido peso importante. Acredito que, para além do seu principal líder e do próprio comunismo, a autoimagem do povo chinês pode ser um fator explicativo dessas relações. Me refiro a uma certa percepção sinocêntrica, herança ainda dos tempos do Império do Meio, uma visão de mundo que confere à China uma centralidade meio incompatível com o papel de mero apêndice de uma URSS, por exemplo.

      Pesaram, também, nesse caso da relação com os soviéticos, uma desconfiança mútua. Da parte da China, devido, por exemplo, a uma anterior tolerância soviética com o Kuomintang. Da parte da URSS, que já enfrentava, no contexto, os impulsos de autonomia da Iugoslávia, o temor de ver outra força comunista despontar de forma independente (ao contrário do que ocorria na maior parte dos países do chamado Leste Europeu). Seriam elementos que jogaram a favor de uma não-submissão chinesa ou a um não-alinhamento automático.

      Apesar do olhar ocidental tender a ver mais semelhanças e uma aliança "natural" entre URSS e China comunista, sempre me parece ter havido interesses próprios de cada uma das partes, agravadas com o tempo (vide a China desenvolver sua bomba atômica em 1964). O acirramento dessas tensões - até com choques na fronteira - jogava a favor de uma aproximação chinesa com os EUA e, inclusive, ao fortalecimento interno de dirigentes mais pragmáticos como Zhou Enlai e Deng Xiaoping (redimido em 1973, anos após seu expurgo).

      Não tive a oportunidade de ler esse autor, Gao Mobo, então não consigo interagir especificamente com as ideias dele. Porém, acredito que essa autenticidade do movimento chinês e sua sobrevida podem ser lidas sob essa perspectiva que tentei defender acima.

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