REPRESENTAÇÕES DOS SENTIDOS DE IKIGAI NO ANIMÊ CELLS AT WORK!
Introdução
Numa determinada sociedade, na qual os valores morais dos indivíduos costumam ser classificados pelo sucesso individual, podemos sentir que apenas alcançamos algum prestígio quando conseguimos a promoção no emprego ou algum lucro com determinado empreendimento. Pode-se encontrar outras sociedades com valores e normas diferentes, onde o senso de comunidade e pertencimento perpassa os trabalhos realizados por cada indivíduo. Inclusive, essa forma de sociedade está representada no animê Cells at Work! [はたらく細胞, Hataraku Saibō] lançado em 2018, dirigido e escrito por Kenichi Suzuki, enquanto uma adaptação do mangá homônimo produzido pela Akane Shimizu e lançado em 2015.
Compreende-se que esse senso de comunidade, representado nessa animação japonesa e que também se preocupa com os impactos causados no ambiente onde os personagens estão inseridos, tem relação com uma visão de mundo oriental que considera todos os elementos da natureza serem dotados de espírito. Nessa perspectiva, considerando os seres humanos como continuidade de divindades que habitam a natureza, acredita-se que as pessoas também seriam dotadas de espírito. Essa visão de mundo também apresenta relação com o Xintoísmo enquanto um sistema de valores que preza pelo culto à natureza e uma matriz cultural que assimila elementos de culturas estrangeiras [Sasaki, 2011].
Como exemplo da representação dessa assimilação na narrativa do animê Cells at Work! nota-se que os personagens que simulam as funções de cada célula do corpo também representam a função especializada que desempenha cada indivíduo na sociedade moderna ocidental e que caracteriza seu lugar nessa sociedade [Durkheim, 1972]. Para garantir a coesão social naquela sociedade descrita no animê, representada como um corpo humano, a coesão social está assentada tanto nos códigos e regras de conduta que aproximam os indivíduos apesar das diferenças entre cada função especializada que exercem [Durkheim, 1972] como também no senso de interdependência e importância típico dos costumes culturais no Japão a partir dos quais os personagens dedicam cuidados ao bem-estar daquele ambiente [Watanabe, 1974; Sakai, 2019] onde usufruem dos recursos necessários para sustentação dos vínculos com àquela sociedade.
Nesse sentido, essa animação japonesa representa os trabalhos especializados de diferentes células do corpo humano e na forma de personagens antropomorfizados, tendo como protagonistas um glóbulo vermelho e um glóbulo branco. A narrativa dessa animação japonesa pode provocar uma identificação com o interlocutor de forma que esse se aproprie dos conhecimentos apresentados [Luyten, 2000]. Dessa forma, o animê utiliza signos tanto da cultura ocidental, como as técnicas de enquadramento cinematográfico e animação para provocar movimento e passagem do tempo nessas histórias [Linsigen, 2007] quanto utiliza os signos da cultura japonesa presentes na ausência de linguagem ou narrativa explicativa que valoriza as possibilidades de sentido a serem construídos na interação do interlocutor [Okano, 2014] com as semânticas corporais comunicadas em expressões faciais, posturas e gestos por esses personagens [Le Breton, 2019]. Esses signos permitem ao interlocutor estabelecer uma relação com as expressões dos personagens, como o desenho acentuado dos olhos [Luyten, 2000], proporcionando situações e sensações que podem remeter às emoções, lembranças e desejos do interlocutor.
Essa narrativa da animação japonesa também pode comunicar
conhecimentos, valores e costumes da cultura japonesa e da cultura ocidental
enquanto um produto de exportação que abarca diversos mercados como os dos
Estados Unidos, México e Brasil [Coêlho; Nascimento, 2010]. Nesse caso, quando
temos o primeiro contato com essa animação japonesa, podemos pensar na seguinte
questão: como os personagens podem sensibilizar o interlocutor inserido na
cultura ocidental para refletir sobre questões do próprio cotidiano?
Signos da cultura japonesa e cultura ocidental na
animação
Nessa animação japonesa Cells at Work! os personagens representam as funções de algumas células, como se fossem pessoas que exercem funções profissionais situadas num corpo humano. Essas células também representam grupos sociais que possuem práticas, normas e expectativas. Compreende-se que o potencial de sensibilização dessa arte acontece porque está operando com textos que consideram signos típicos tanto da cultura japonesa como também da cultura ocidental tendo em vista realizar uma identificação com o interlocutor, mediante os discursos do cotidiano sobre experiências possíveis ou desejáveis de serem vivenciadas por esse [Linsigen, 2007; Coêlho; Nascimento, 2010]. Esses textos podem ser apreensões sobre pensamentos, vontades e intenções que são comunicados pelos signos. Enquanto os signos podem ser instrumentos caracterizados em imagens, palavras e gestos que comunicam e medeiam a relação interpessoal dos indivíduos entre si [Bakhtin, 1997].
Ainda como exemplo da construção desse processo de
sensibilização e identificação com os possíveis interlocutores, o animê Cells at Work! proporciona o
desenvolvimento das trajetórias de dois personagens principais: a personagem
AE-3803 que, desde quando era um eritroblasto situado numa fase de
desenvolvimento representada como se fosse a sua infância, apresenta
dificuldades para lidar com as etapas de maturação necessárias para se tornar
um glóbulo vermelho. Apesar desses obstáculos, a personagem tende a considerar
essas dificuldades como oportunidade para aprimorar suas funções e aprender
lições com as hemácias já especializadas e experientes. Por causa desse
histórico de dificuldades durante o seu desenvolvimento, ela tende a ser
tratada como desajeitada pelos demais colegas. Por exemplo, AE-3803 tem muita
dificuldade em se orientar e localizar os lugares onde precisar chegar. Quando
ela era apenas um eritroblasto e estava numa espécie de sala de aula,
participou de uma simulação de fuga e perdeu-se na medula óssea onde ela
encontrou uma bactéria que acreditava ser seu professor disfarçado. Contudo,
ela descobriu que era uma verdadeira bactéria que queria atacá-la e, nesse
momento, um mielócito apareceu para salvá-la. Por fim, também
apareceu um neutrófilo que eliminou a bactéria e separou ambas as células
imaturas. Nesse momento, eles combinaram entre si para se encontrarem novamente.
Embora as chances fossem mínimas por causa da enorme quantidade de células que
circulam no corpo humano.
Figura 1:
AE-3803, Glóbulo Vermelho/Kenichi Suzuki
Esse mielócito que buscou ajudar aquele eritroblasto se
torna o glóbulo branco U-1146, especificamente um neutrófilo capaz de eliminar
vírus e bactérias. Esse glóbulo também consegue tornar mais eficaz e seguro o
processo de transporte de gás oxigênio e gás carbônico realizado pelos glóbulos
vermelhos. Além desse papel, ele também realiza um papel de conselheiro e
protetor da AE-3803 quando também a orienta sobre os caminhos mais acessíveis
para que ela realize aquele transporte. Nesses momentos em que as células mais precisam
de proteção e orientação nesse percurso, o glóbulo branco está sempre disposto
a sacrificar sua própria vida para garantir que cada célula realize sua função
especializada e mantenha a homeostase do corpo humano.
Figura 2:
U-1146, Glóbulo Branco/Kenichi Suzuki
Quando essa narrativa da animação se situa durante a
infância de ambas as células, nota-se que aquela relação de cuidado e
encorajamento tem sido construída desde quando eram células que não possuíam
uma função especializada pelo processo de diferenciação e maturação conhecido
como hematopoiese. Esse processo também representa o processo de amadurecimento
dos personagens desde as fases categorizadas como a infância, a adolescência e
a fase adulta, possibilitando um sentimento de empatia com esses personagens
que, durante essa trajetória, sentem medo, coragem, curiosidade, paixão e
amizade enquanto experiências que podem ser verossímeis.
Figura 3: AE-3803, Eritroblasto;U-1146,
Mielócito/Kenichi Suzuki
Singularidades do Ikigai em diferentes trajetórias
A partir dessa descrição sucinta sobre as trajetórias de ambas as células, pode-se compreendê-las enquanto comunicadas por atitudes, crenças e valores representados na narrativa do animê e que se aproximam da noção cultural Ikigai. Para abordar essa concepção própria da cultura japonesa, podemos considerar como exemplo o fato de ambos os personagens realizarem trabalhos favoráveis ao bem-estar daquele corpo humano representado como um ambiente que integra uma forma de sociedade. O fato de realizarem essas funções pode ser justificado por uma motivação relacionada ao Ikigai, geralmente definido no senso comum como aquilo que descreve “os prazeres e os sentidos que motivam a viver” [Mogi, 2017, p.10, minha tradução]. Esse Ikigai tem sido identificado por pesquisadores como o antropólogo Gordon Matthew [1996] enquanto um fenômeno presente na ênfase da interdependência pessoal comunicada pelos japoneses, a partir de suas histórias de vida que foram analisadas em diferentes estudos que apontam a pouca ênfase atribuída à independência tão valorizada na cultura ocidental [Gordon, 1996].
De acordo com o neurocientista japonês Ken Mogi, os sentidos de Ikigai podem ter a ver com experiências cognitivas e comportamentais pelas quais hábitos e valores são organizados para realização cuidadosa e gradual de determinado objeto de interesse. Esse objeto de interesse geralmente está relacionado com algum trabalho que é capaz de imergir as pessoas no momento presente, durante a realização das atividades desse trabalho, e sem a intenção de receberem reconhecimento imediato. Assim, esse processo de realização de Ikigai pode proporcionar uma autoconsciência da contribuição que esse trabalho terá na vida dos outros. Essa autoconsciência pode ser encontrada durante o desenvolvimento do glóbulo vermelho, quando ela reconhece que embora tenha dificuldades de realizar o seu trabalho ainda assim busca aprimorá-lo enquanto valoriza o processo de experiências que implicam encontros e aprendizados com as células mais experientes. Nesse caso, o glóbulo vermelho tem consciência que cada um desses encontros são experiências transitórias pois vivencia constantemente a morte e desencontro das células.
Essa noção também pode remeter à noção de Caminho [Gonçalves, 2004] enquanto um processo que, durante a trajetória do indivíduo, pode permitir que aprenda e desenvolva novos conhecimentos e atitudes de maneira não linear. Nesse sentido, o Ikigai também se aproxima dessa noção porque valoriza a autoconsciência do indivíduo nesse processo de experiências que podem aprimorar suas habilidades, valorizando a interdependência com o outro como parte desse Ikigai, diante de um propósito a ser alcançado e que se torna o próprio processo da realização desse percurso [Okano, 2013].
O antropólogo Gordon Mathews acrescenta que esses sentidos de Ikigai podem ser diferentes de acordo com as vivências de moças e rapazes japoneses, com diferentes faixas etárias, e os contextos históricos onde estão situados. Como exemplo desse fenômeno, estudos verificam que as mulheres japonesas tendem a considerar a família como o seu Ikigai enquanto os homens consideram o trabalho. No entanto, o aumento da expectativa de vida no Japão também influenciou outros possíveis sentidos de Ikigai ao mobilizar os aposentados e as aposentadas à construírem um senso de comprometimento e pertença para além das relações com a família, o grupo de colegas de trabalho e as empresas, prezando pelo exercício de hobbies como forma de realizar o seu Ikigai.
Independente dos diferentes sentidos que Ikigai pode apresentar nas diversas
trajetórias dos japoneses, possuem em comum tanto o senso de compromisso do eu
com a sociedade e ambiente onde estão inseridos quanto a responsabilidade com a
escolha individual em dedicar seus esforços ou não nesse compromisso [Gordon,
1996]. Ainda como exemplo desse compromisso e responsabilidade representados na
narrativa de Cells at Work! tem
o trabalho realizado coletivamente pelas plaquetas que, junto com a cooperação
das células que exercem suas funções especializadas, conseguem formar coágulos
para retenção de hemorragias.
Figura 4: Plaquetas/Kenichi Suzuki
Diante de todo esse compromisso e responsabilidade das
células com as suas funções especializadas, será que existe espaço para elas
expressarem alguns desejos? Durante o desenvolvimento da narrativa dessa
animação, acontecem alguns momentos entre o glóbulo branco e o glóbulo vermelho
que remetem a uma declaração romântica quando, de repente, acontece alguma
demanda que requer à ambos retomarem as suas funções.
Figura 5: AE-3803, Glóbulo Branco;U-1146,
Glóbulo Vermelho/Kenichi Suzuki
Percebe-se que durante o amadurecimento de ambas as
células, as exigências para que assumam um papel nessa sociedade que atenda as
normas e as expectativas sociais podem ter impossibilitado a concretização
desse desejo amoroso que implica abrir mão das suas funções especializadas.
Nesse caso, o animê Cells at Work!
possibilita entender que as mudanças dos sentidos de Ikigai podem representar os esforços das pessoas para expressarem
seus desejos e paixões. Nessas circunstâncias, embora não possam controlar os
fatos sociais, consideram suas vivências enquanto possibilidades que ainda
podem realizar seus sonhos.
Referências
Bruna Navarone Santos é Bacharel e Licenciada em Ciências
Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestranda em
Ensino em Biociências e Saúde pelo Instituto Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo
Cruz (PGEBS/IOC/Fiocruz).
E-mail: bnavarone@gmail.com.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação
verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 1997.
COÊLHO, Célia Tamara.; NASCIMENTO, Elvira Lopes. Mangá:
uma ferramenta didática para multiletramentos. In: Seminário de Pesquisa em
Ciências Humanas, 8., 2010, Londrina, PR. Anais... Londrina: UEL, 2010.
p.389-408.
DURKHEIM,
Émile. O suicídio: estudo sociológico. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
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(caminho) na cultura japonesa”. In: Do – A essência da Cultura Japonesa. São
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Cells
at Work![Anime]. Direção: Senichi Suzuki. Japão: Estúdio David Production, 2018. Adaptação do mangá
criado por Akane Shimizu, lançado em 2015
LE BRETON, David.
Antropologia das emoções. Petrópolis: Vozes, 2019.
LUYTEN, Sônia. Mangá – O Poder dos Quadrinhos Japoneses.
2ª edição. São Paulo: Hedra, 2000.
LINSINGEN, Luana Von. Mangás e sua utilização pedagógica
no ensino de ciências sob a perspectiva CTS. Ciência & Ensino, v.1, n.p.,
2007.
MOGI, Ken. The Little Book of
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Publishing, 2017.
MATHEWS, Gordon. The Stuff of
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OKANO, Michiko. Prefácio: Dô
– Caminho da Arte. In: SHIODA, C. K. J; YOSHIURA,
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SAKAI, Yusuke. Outro Lado da
Natureza e da Educação Ambiental no Japão Contemporâneo. Revista
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SASAKI, Elisa. Valores culturais e sociais
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WATANABE, Masao. The conception of nature in Japanese culture. Science, v.183, n. 4122, p.
279-282, 1974.
Oi Bruna, que texto legal! Essa questão de cumprir uma função na sociedade não é mais presente agora com o fortalecimento do discurso nacionalista e conservador no Japão?
ResponderExcluirAtenciosamente,
Janaina de Paula do Espírito Santo.
Prezada Janaina,
ResponderExcluirmuito obrigada!
ótima pergunta! Essa questão de exercer determinado papel na sociedade japonesa tem muito a ver com os valores e as crenças que estão sendo valorizadas naquele determinado contexto. Por exemplo, a pesquisadora Elisa Sasaki no artigo "Valores culturais e sociais nipônicos" aborda sobre como em diferentes contextos históricos na sociedade japonesa, devido aos aspectos sociopolíticos daquela sociedade, enfatizavam mais valores do confucionismo, budismo ou xintoísmo. Elisa também comenta que o confucionismo influenciou essa valorização da ordem social ideal que deveria ser realizada pelo exemplo moral do outro. Por exemplo, na relação entre pais e filhos em que os filhos deveriam expressar obediência e respeito à essa relação hierárquica.
Assinado: Bruna Navarone Santos