André Ribeiro

YU BOYA E ZHONG ZIQI: O CULTIVO DA AMIZADE NA INTERSEÇÃO COM A MÚSICA CHINESA ANTIGA PARA GUQIN


A lenda de Boya e Ziqi

Yu Boya 俞伯牙 e Zhong Ziqi 鍾子期, dois personagens lendários da música chinesa antiga. Foram mencionados pela primeira vez nos “Anais da Primavera e Outono” 呂氏春秋 Lüshi Chunqiu (239 ac.); a compilação das crônicas oficiais do Estado de Lu, organizadas por Lü Buwei 呂不韋 (291-235 ac.), onde se lê:

 

“Quando Zhong Ziqi morreu, Boya quebrou seu qin e arrancou suas cordas. Até o fim de sua vida, ele nunca mais o tocou porque sentia que não havia ninguém no mundo por quem valesse a pena fazê-lo”.

 

Em que pese o fato das crônicas terem sido interpretadas ao longo dos séculos como a síntese do pensamento político de Confúcio, não seria inexato ler na inscrição dos personagens Boya e Ziqi nos documentos históricos um caráter prático de instrução quanto às condutas tidas como virtuosas ao Qin. Confúcio, ele mesmo amante dessa arte, teria esclarecido a este respeito de que a prática do Qin só atinge a sua maturidade quando reconhece os seus pares. A exemplo de uma passagem no Qínshǐ 琴史 [“a história do qin”], Confúcio deu provas dessa conduta, pois ele mesmo teria insistido por muito tempo no estudo da peça Wén Wáng Cāo 文王操 até conhecer intimamente o seu criador.

Wén Wáng (1112–1050 ac.) é tido como fundador póstumo da Dinastia Zhou (1046-256 ac.). Em sua homenagem, foram compostas inúmeras odes, grande parte delas se encontra no Clássico da Poesia. O testemunho acerca da relação de Confúcio com a arte do Qin nos chega através dos “Anais de História, Casa Hereditária de Confúcio” 世紀 ,孔子世 十七 Shìjì, kǒngzǐ shìjiā sìshíqī, 47; onde se lê:

 

"Confúcio finalmente parou um dia e ficou pensando profundamente. De repente, ele sorriu e confiante disse: “Finalmente sei quem é o criador. Ele tem pele escura, é esguio, clarividente em suas decisões e tem o comportamento de um governante nobre de muitos estados. Quem mais poderia ser senão o Rei Wen de Zhou!” (SIMA QIAN (109-91 ac.))

 

É desse modo, como veremos, que a arte do Qin solicita uma entrega ao outro, ao escolhido para ser o depositário de uma união genuína, sob os auspícios da amizade. União, lealdade, cumplicidade e respeito aos ancestrais constroem a aura da lenda. Contudo, se Boya e Ziqi existiram, não se sabe. A época em que viveram permanece incerta. Dadas as fontes documentais divergentes, a cronologia de suas vidas ora é estabelecida durante a Dinastia Zhou (1046–256 ac.) no Estado de Chu (1030 ac. – 223 dc.), ora durante a Dinastia Jin (266–420 dc.), ora entre a Dinastia Zhou e as Dinastias Nordeste e Sudeste (420–589 dc.); ocasionalmente, entre 722 ac. e 484 dc. (Thompson, 2021).

Muito embora os textos numerosos divirjam quanto aos elementos biográficos — locais, cronologia dos acontecimentos e nomes atribuídos a Boya — por outro lado mantêm em comum a imagem de um jovem músico de ascendência nobre, talentoso e insatisfeito; após anos de estudo não se via à altura da arte. Uma das narrativas mais populares conta que seu professor, na tentativa de aplacar a angústia de Boya, o teria levado à Ilha Penglai, a famosa morada dos imortais. Uma vez lá, seu professor pediu que aguardasse enquanto buscava o seu novo mestre, desaparecendo a seguir na floresta. Passaram-se dias, e ele nunca retornava. Desanimado, Yu Boya sentou-se numa pedra à beira do rio para contemplar a natureza à sua volta.

Fechado em si mesmo, foi-se abrindo à contemplação, e sem mais pesares começou a improvisar com os sons que lhe chegavam — o vento, as águas, os sons da montanha. Seu coração preencheu-se de afetos e emoções profundas. Foi quando ouviu uma voz em meio à floresta dizer: “Como é grande a montanha! Tão grande quanto o Monte Tai!” Sem saber de onde vinha a voz, Yu Boya seguiu tocando, e a voz ressoou novamente: “Como é vasto o rio. Tão vasto e poderoso como o oceano!” As peças que interpretava, respectivamente, eram “Altas Montanhas” 高山 e “Águas Correntes” 流水. Erguendo os olhos, Yu Boya interrompeu sua execução para surpreender-se com a silhueta de um homem saído da floresta. Era Zhong Ziqi 鍾子期. (Cleary, 2011)

Diz a lenda, Yu Boya ficou profundamente emocionado por encontrar alguém que o compreendia. E sentiu-se tão completo que levantou-se e abraçou aquele estranho. “Meu amigo! Meu verdadeiro amigo! Somos um só coração!”. Separam-se, cada um seguindo viagem, sob a promessa de um novo encontro. O desfecho desse encontro é abrupto, se dá quando, a caminho de casa, Boya recebe a notícia da morte de Ziqi, e modifica o seu itinerário para visitar o local onde fora sepultado. Num ato final Boya despedaça o seu Qin na pedra do túmulo de Ziqi, jurando nunca mais voltar a tocá-lo novamente.

Seja, em hipótese, fruto de uma ficção com o propósito de ilustrar as gerações de praticantes com um exemplo mais alto de conduta, entretanto, o impacto de suas supostas vidas e trajetórias entrelaçadas tornaram a lenda num recurso discursivo, uma chamada à antiguidade, como cerne da prática musical, e ao mesmo tempo restauradora dos ideais de conduta exemplares ao Qin.

 

A narrativa Ming de Feng Meng Long

Grande parte das narrativas sobre ambos foram postas em circulação durante a Dinastia Ming (1368–1644), entre os séculos 14 e 17 — e sabemos que este período da história chinesa foi marcado pelo revisionismo em vista do ressurgimento de um governo imperial Han após quase cem anos de dinastia mongol Yuan (1271-1368).

A popularização da lenda se deve, principalmente, ao poeta e novelista, Feng Meng Long 馮夢龍 (1574-1645), cuja versão se tornou modelo para as outras. De origem aristocrática, nascido numa família de escritores, Feng Meng Long cedo se encaminhou para as provas de admissão ao serviço público imperial, não obstante, sem sucesso. Viu-se, então, obrigado a carreira de tutor de ensino, parte do tempo se dedicando a editar coletâneas de histórias populares e lendas da antiguidade. Conquistou certo destaque com a publicação de sua trilogia composta por “Palavras ilustres para instruir o mundo” 喻世明言 Yushi Mingyan (mais conhecido como “Histórias Antigas e Novas » 古今小 Gujin Xiaoshuo); “Palavras Eternas para Despertar o Mundo” 醒世恆言 Xingshi Hengyan, e por fim, “Palavras Abrangentes para Admoestar (aconselhar) o Mundo” 警世通言 Jingshi Tongyan, 1624.

Com o sucesso da trilogia obteve um cargo de instrutor oficial na administração do condado de Dantu, atualmente, Zhenjiang em Jiangsu (1630), de onde galgou na carreira até se tornar magistrado em Shouning (壽寧) em Fujian (1634). O terceiro volume desta obra “Palavras Abrangentes para Admoestar (aconselhar) o Mundo” abre com a história de Boya e Ziqi sob o título “Boya despedaça o seu qin em gratidão por seu melhor amigo” 俞伯牙摔琴謝知音 yuboya shuai qin xie zhiyin.

É digno de nota o sentido exato dos dois caracteres finais 知音 zhīyīn, cujo significado “amigo íntimo” ou “alma gêmea”, na decomposição dos termos zhī, “estar consciente ou desperto”, e yīn “som”, nos revela ainda um sentido musical pelo que se aproxima de “estar desperto” ou plenamente “ciente da sonoridade” (do outro), “conhecê-la intimamente”.

Feng Meng Long foi responsável por firmar a narrativa sobre Boya e Ziqi, no que as subsequentes versões ao longo da Dinastia Qing (1644-1912) viriam a vulgarizá-la, e com isso reavivar o ideal de liberdade vinculado ao Qin, fora dos ritos e convenções sociais. Dali em diante a lenda multiplicaria em versões, não raro, alternando datas, nomes e locais.

 

A amizade na intersecção com a música

Por essa via interpretativa temos acesso a visão particular Ming sobre a amizade na intersecção com a música antiga chinesa. Em essência, ela transmite a imagem de dois amigos que se tornam um só corpo (um organismo), pelo que um (Boya) se deixa abraçar pelo outro, o amigo que o escuta e irá situar a sua arte no mundo (Ziqi); ou conforme mencionado no Liezi 列子 (“Clássico da simplicidade e vacuidade”  沖虛真經 chongxu zhenjing): “Seu coração e o meu são um só”, teria dito Boya, após Ziqi dizer em voz alta qual música passava-lhe na mente, antes de sequer tocá-la. (Cleary, 2011).

Entende-se por isso que, no ideário Ming, o florescimento da amizade verdadeira é o ápice do estudo ao Qin; como também repercute a noção de que haja uma curva de aprendizado, ao longo dos anos, onde o estudo solitário, por vezes técnico, deve enveredar-se por um caminho de abertura ao outro que irá fornecer a medida de apreciação e potência musical necessárias. O amigo é o elo final da cadeia que faz a ligação entre os “amantes do Qin” e seus ancestrais.

De outro ângulo, é pela conquista da intimidade (indissociável) entre a performance e a escuta do outro que o vínculo da amizade permanente se estabelece, respectivamente, entre aquele que toca perante a quem se deixa tocar, ou entre aquele que oferece a sua escuta a quem se propõe a escutar; mas não sem dizer o que se sente, pois sabe-se que as palavras exprimidas nascem dos sons conectados em ambos corações. Toda mística da amizade Ming ao Qin emana dessa relação única e simbiótica do músico em busca do outro que irá fertilizar a sua arte, paradoxalmente, ao dar-lhe a medida da vida e do temor pela morte, pois:

 

“Segue-se que surge o sentimento de não suportar a separação, por medo de que, quando o encontro for disperso, será difícil se encontrar novamente. Vida e morte são realmente difíceis de prever. E assim, além de me acautelar, aqui vai a todos os que gostam de amigos: se alguém encontrar uma [boa] pessoa, não a deixe para trás; deve-se considerar o caso de Boya como uma lição”. (Wang, 1815). Conforme as notas na margem de uma cópia manuscrita do texto supra-referido de Feng Meng Long, “Boya despedaça o seu qin em gratidão por seu melhor amigo”, realizada por Wang Jinwen de Beiping em 1815, um literato Qing do século 19. Hoje esse manuscrito consta do acervo da Biblioteca Capital da China.

 

Quando Boya despedaça o seu Qin no túmulo de Ziqi o pacto entre eles é selado com mais força do que em vida. Além de honrar a memória do amigo, confere a este um ‘poder de animação’ da vida dedicada ao Qin, não obstante, perdida. Por que, então, seguir tocando Qin se todo o apreço pelo indizível, aquilo do qual nada se pode dizer, senão sentir e pulsar a dois, foi chancelado pela morte? Essa era toda a questão dos músicos Ming, no que diz respeito à apreciação do Qin e suas músicas.

Diante do que não pode ser posto em palavras, a arte do Qin se firma com força inabalável, cheia de silêncios, cercada de sentidos — e todos os esforços pessoais se traduzem no encontro com o outro, o amigo que irá completar o sentido (e caminho) da prática musical. Muito por isso, resta aos dias de hoje a impressão de que se trata de uma arte que só se pode cultivar verdadeiramente a dois:

 

“Lendo este livro, eu que estou agora com vinte e sete anos, estive pensando: Ziqi era um homem virtuoso famoso na antiguidade, enquanto eu sou apenas um homem rude do presente, então, naturalmente, não posso ter os encontros maravilhosos dos antigos. Mas eu também tenho amigos que gostam de minha crueza, de modo que toda vez que nos encontrarmos, embora não possamos falar sobre ter os mesmos sentimentos que os antigos, ainda podemos compartilhar as alegrias da compreensão sincera e o feliz encontro de palavras.” (Wang, 1815)

 

Uma arte a dois sob a perspectiva da ancestralidade

Nessa linha de reflexão, o Qin mediado pela sensibilidade de um e de outro torna-se uma arte da escuta, e a performance um meio de expressão, onde dois se relacionam e compartilham aquilo que é intraduzível nas palavras ordinárias, ou, simplesmente, porque amarradas em campos de saber e prática discursivas que nada tem a contribuir que seja “enobrecedor” (seguindo aqui a etimologia do próprio nome do instrumento: guqin 古琴 como a “arte antiga [enobrecedora] do qin”), pois que as palavras não perfazem a ligação com os ancestrais.

Entre escuta e expressão está todo o referencial da arte; precisamente, no que concerne ao reconhecimento do valor da antiguidade no outro. A conduta, as palavras, o estilo performático dos músicos apaixonados, devotados um ao outro, coloca em evidência o caráter auto-referente do Qin ao sobrescrever e desenhar as relações de amizade sob a perspectiva do resgate de uma identidade ancestral.

Tendo em vista a amizade exemplar de Boya e Ziqi como divisa espiritual, o músico na era Ming reconhecia a necessidade de restabelecer o ‘senso de antiguidade’ que sempre guiou as gerações de intérpretes. Mas a lógica interpessoal desse reconhecimento mútuo — de dois amigos nutridos pela ancestralidade — ela mesma prescinde do saber estruturado no tempo presente, pois refere antes a ‘aura’ que envolve o ‘vínculo amoroso’ do que sua determinação em discurso, a exemplo de uma passagem do texto de Feng Meng Long:

 

"No curso de sua animada conversa, a lua empalideceu, as estrelas escureceram e o primeiro brilho fraco do amanhecer iluminou o céu oriental. Todos os barqueiros se levantaram, prepararam as cordas e as velas e se prepararam para zarpar. Ziqi se levantou para se despedir de Boya. Oferecendo uma taça de vinho a Ziqi, Boya segurou a mão do último e disse com um suspiro: “Meu bom irmão, eu te conheci muito tarde na minha vida, e agora temos que nos separar disso com pressa!” Quando Ziqi ouviu isso, lágrimas caíram de seus olhos na xícara, involuntariamente. Ele terminou o vinho em um gole, encheu outra taça com vinho e ofereceu a Boya em troca. Nenhum deles podia suportar a ideia de se separar. “Não estou pronto para me separar de você ainda, meu irmão", disse Boya.” [Feng Meng Long, 2005, p. 14].

 

Em termos práticos, é esperado que os músicos se aproximem juntos do que imaginam ter sido o modo de vida dos antigos para que se sintam conectados pelos laços de uma história antiga, semifictícia e semi-transplantada de uma época a outra. Muito porque o pressuposto essencial, para quem caminha universo adentro (do Qin), é justamente a crença de que os antigos estão (e sempre estiveram) conectados ao Qin. Portanto, enveredar-se por seu caminho é exprimir uma ligação inextinguível com os antigos, pelo que vem a sustentar toda uma prática histórica.

Para confirmar essa devoção diante de uma linhagem ancestral, a musicóloga Zeyuan Wu, em sua dissertação de mestrado “Playing Antiquity: Qin Musiking and Literati Culture in Late Imperial China (2015)” traz à tona uma passagem do prefácio de autoria de Yang Biaozheng 楊表正 (1520-1590), um acadêmico Ming, estudioso do Qin. No quarto volume de seu célebre compêndio ‘Manual Qin revisado segundo a tradição ortodoxa’ (1585)  重修真傳琴譜 Chongxiu Zhen chuan Qinpu, se lê:

 

“‘O Qin dos antigos ainda pode ser tocado; e ser capaz de tocar uma música antiga (gu) é como ouvir as palavras dos antigos.’ Isso [significa] estar em comunhão com a antiguidade remota, imemorial, (taigu 太古). Felizmente, embora o ethos puro tenha desaparecido, o caminho do Qin (qindao 琴道) ainda existe. Os eruditos e elegantes estudiosos do passado e do presente (gujin 古今) devem prestar atenção a isso.” [Yang Biaozheng 楊表正,  vol. 4, p. 256].

 

No que a autora, Zeyuan Wu, conclui a partir dessa citação:

 

“O qin era considerado um “descendente” direto dos tempos antigos e, portanto, acreditava-se que fazia a ponte entre o presente e o passado remoto.”  (...) “Em suma, acreditava-se que o qin era um dos poucos instrumentos musicais valorizados pelos antigos sábios, e que fora ininterruptamente transmitido para as épocas posteriores. Tinha valor e importância especiais porque era um dos poucos instrumentos musicais — senão o único — com o qual as pessoas mais tarde podiam confiar para se comunicar com os antigos e se aproximar do puro ethos do passado remoto. Foi a crença em sua capacidade única de se conectar com os antigos sábios que fez o qin se destacar entre todos os instrumentos musicais”. [Zeyuan Wu, 2015, p. 29]

 

Note-se que a pesquisadora traduziu ao inglês “suoxing chunfeng ji san 所幸淳風既散” como: “Fortunately, although pure ethos were gone, the Way of qin (qindao 琴道) still exists.”; optando por traduzir chunfeng 淳風 por “ethos puro”. Preferível se fosse “costume autêntico”, no que seguiria o que acredito ser a melhor opção para legibilidade do texto: “Embora os costumes autênticos tenham sido dispersos, felizmente o caminho o qin ainda existe (persiste).” E ainda, ao empregar o adjetivo ‘disperso’, acepção válida para chunfeng 淳風, estaríamos mais próximos da poesia do verso, cujo sentido literal é: “Embora os ventos tenham se dispersado o caminho do Qin ainda persiste”, aludindo assim a dispersão dos ‘costumes’ ou ‘condutas’ (ao Qin), mas não da trilha ou marcas deixadas.

É com base nessa confiança mútua depositada sobre o objeto ‘transferencial’ (o Qin) que a prática se apoiava, e ainda hoje se apoia, em contextos diversos ligados à tradição de Boya e Ziqi. O instrumento, enquanto objeto simbólico e representativo dos laços com os antigos, remete a uma série de ramificações indiciais por onde se expande o sentimento de pertencer à antiguidade. Algo que depende diretamente do olhar do outro, da figura do amigo que irá autenticar a simbiose das condutas em consonância aos valores ancestrais. É por isso também que a quebra das relações de amizade, simboliza a perda do objeto transferencial, expresso na simbologia do Qin, que proporcionava tal união.

 

Considerações breves

O guqin constitui-se como um instrumento de vinculação afetiva e identitária em relação à história social chinesa, no que visa estabelecer-se como elemento afirmativo primário de pertencimento ancestral. Enquanto objeto representativo do cultivo da amizade verdadeira, ao longo da história antiga, proporciona a expressão de valores e condutas constantemente autenticadas como virtuosas, e ainda presentes nos dias atuais. Justo por isso, serve de ponte simbólica entre passado e presente, fazendo crer em uma ligação inextinguível com os ancestrais. Para além dessas considerações, deve-se destacar ainda o papel da prática musical do guqin na constituição psico-afetiva dos músicos refletida em sua história social.

 

Referências

André Ribeiro é professor de musicologia da Universidade de Brasília (UnB), músico, compositor e etnomusicólogo pela Universidade de São Paulo (USP). Instrumentista de guqin, sob a orientação de Peiyou Chang 張培 e tem como mentor o Mestre Yuan Jung-Ping 袁中平 da Taipei Qinhall). Coordenador do grupo POEM Poéticas Orientais em Música, vinculado ao programa de pós-doutorado do Departamento de Música da Universidade de São Paulo. É pesquisador do LINE (Laboratório Interdisciplinar de Estudos do Som) na Universidade de Brasília. Co-fundador e diretor da Guqin Brazil Association 巴西古琴協會 (2019), e diretor musical do Gaoshan Liushui Ensemble 高山流水 de música chinesa desde 2012 e membro da New York Qin Society. É ainda pesquisador na comunidade chinesa em São Paulo, onde conduz pesquisas etnográficas sobre música budista, seus ritos e cerimônias, na comunidade do Templo 中觀寺 de Tzong Kwan.

 

CLEARY, Thomas. Liezi, The Book of Master Lie. Kindle Edition, 2011.

FENG, Meng Long. Stories do Caution the World. University of Washington Press, Seattle, 2005.

LIEZI. Tratado do Vazio Perfeito. São Paulo: Landy, 1999.

THOMPSON, John. Disponível em: < http://www.silkqin.com/09hist/qinshi/boya.htm > Acesso em 10 ago. 2021.

VAN GULIK, Robert. The Lore of Chinese Lute: an essay in the ideology of the Ch’in. Tokyo: Sophia University, 1969.

WU, Zeyuan. Playing Antiquity: Qin Musiking and Literati Culture in Late Imperial China. Ohio: Ohio State University, 2015. [tese].

YANG, Biaozheng. Chongxiu zhengwen duiyin jieyao zhenchuan qinpu daquan 重修正文對音捷要真傳琴譜大全 (Segunda edição do Manual Autêntico e Completo do Qin: com correção das letras e compilação dos sons e instruções rápidas), impressão de xilogravura, 1585.

ZHENZHEN Lu, “A Friend of a Lifetime: On Yu Boya smashes his zither to mourn a dear friend, a youth book”.
Disponível em: < https://www.csmc.uni-hamburg.de/publications/mom/70-en.html >. Acesso em 02 Out. 2020.

 

Documentos históricos

SIMA QIAN (109-91 ac.). Registros do Grande Historiador 太史公書 Taishigong Shu 史記 Shiji: 109 BC-91 BC. Disponível em: < https://ctext.org/shiji/kong-zi-shi-jia#n6952 >.

10 comentários:

  1. Olá André Ribeiro!
    Um prazer ler seu texto. Adorei conhecer o caráter ancestral e simultaneamente representativo da amizade do Qin 琴.


    No final você disse que o Qin "proporciona a expressão de valores e condutas constantemente autenticadas como virtuosas".
    Pergunta: por favor, poderia explicar melhor a noção de "virtude" em relação ao Qin?
    (Poderíamos entender, por exemplo, que o aprendizado do Qin incluiria o cultivo de certas condutas, como a lealdade? Se sim, como isso ocorreria?)

    Matheus Oliva da Costa

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  2. André Silva Pereira de Oliveira Ribeiro5 de outubro de 2021 às 09:03

    Ola Matheus, obrigado pela leitura!

    Em relação às condutas tidas como virtuosas, no passado eram aquelas que passavam pelo crivo dos ensinamentos confucionistas nos termos de 'zhōng' 忠 (lealdade, devoção, honestidade). Quer dizer, na antiguidade a qualidade do vínculo entre amantes dessa arte era medida pela lealdade e devoção pelos antigos mestre de Qin.

    Entretanto, hoje, a virtude como referência entre instrumentistas está fortemente ligada ao respeito e devoção pela história da prática do Qin. Isso é muito enfatizado nas escolas mais tradicionais da atualidade pela adesão de certos comportamentos referencias, com base nos preceitos históricos adotados no momento da prática, dentre eles: vestir-se apropriadamente para a prática, não usar roupas impróprias (como as de baixo), evitar tocar qin para pessoas que não apreciam ou não tem interesse pela arte, não fazer performances públicas pensando em auto-promoção, não criticar a prática e performance de seus colegas de escola, sempre estimular o estudo ininterrupto, abster-se de fazer propaganda de determinada escola, não tocar em dia de tempestade ou durante momentos de luto e por aí vai... Cada escola irá enfatizar alguns desses preceitos. Eles são constantemente referidos na literatura histórica do Qin.

    Contudo, assistimos hoje a ressignificação dessas condutas pelo uso massivo das mídias sociais. Em geral, os instrumentistas se vestem com roupas de época. Por outro lado, acabam realizando performances públicas por auto-promoção. Algo que seria condenável segundo a prática das escolas tradicionais.

    André Silva Pereira de Oliveira Ribeiro

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  3. Adorei a resposta, bem esclarecedora. Obrigado.

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  4. Gostei muito do seu texto, aprendi muito, obrigada.

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    1. André Silva Pereira de Oliveira Ribeiro6 de outubro de 2021 às 15:07

      Obrigado você Carmen :)

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Olá, gostei demais do seu texto! foi algo novo para mim ler sobre o Qin de forma tão conectada ao simbólico.

    Gostaria de perguntar se há uma noção da prática do Qin como uma instituição da dádiva e se, caso compreendida como tal, esse modo de a enxergar e a entender poderia ser considerado uma das forças que possibilitaria a manutenção dessa prática para além de um simples aprendizado que sobreviveu e é passado por meio de gerações.

    Helen Avelino

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  7. André Silva Pereira de Oliveira Ribeiro7 de outubro de 2021 às 08:13

    Olá Helen, o Qin está muito vinculado ao taoismo esotérico e a cultura confucionista, visto Confúcio ter homologado a prática desse instrumento em vida.

    Um importante documento histórico do século II, intitulado 琴操 Qin Cao de autoria de Cai Yong 蔡邕 (133-192) fixa uma origem mitológica do Qin como dotado de poder de regulação do universo. De certo modo, é um instrumento divino entregue aos homens por um rei mitológico da china, Fuxi. Esse texto citado diz: "Fuxi construiu o primeiro Qin para ilustrar a harmonia celeste do yin e do yang, e para harmonizá-lo com as virtudes celestes."

    Outro documento Song (906-1280) nos diz: “O Qin! Para a música é um instrumento muito importante, repleto das mais antigas sonoridades puras, contendo inexauríveis belezas de grande interesse. Seus sons se regulam, suas notas se esclarecem. Seus marcadores harmônicos dourados, suas tarraxas de jade, seus cordões de um vermelho brilhante cinábrio (e para segurá-lo) suas bolsas de brocado, são esplêndidas, sem desperdício, embora dispendiosos sem serem extravagantes. Começou com Fu Xi, atingindo a maturidade durante as Três Dinastias (Xia, Shang e Zhou); estende-se do Imperador, mas entre o povo comum, tanto os mais baratos quanto os valiosos [instrumentos] podem ser obtidos. No entanto, “entre aqueles cujo coração é sem virtude, que não têm o profundo interesse pelas atividades literárias”, não é apropriado que eles se esforcem para obtê-los. Quando (o Qin) é grandioso, pode-se fazer mover o Céu e a Terra, mover fantasmas e espíritos. Quando é delicado pode conduzir o comportamento dos pássaros e animais, proporcionar a confiança acolhendo-se na grama e nas árvores. Uma vez conquistado, o mais importante é que ele pode ser usado para mudar as pessoas para que elas tenham lares bem construídos [cuja regência não se pode senão confiar], e em menor grau, menos importante, é que ele possa ser usado para desfrutar do Dao e esquecer as circunstâncias ruins: todas essas são as virtudes que o Qin pode fazer acontecer. O Qin não precisa de palavras. Embora os professores possam aprender com eruditos confucionistas, cheios de sobrancelhas espessas e muitos anos de experiência, com estudos em profundezas vigorosas, ainda assim não conseguiriam chegar às casas de família, então, como eles podem ser capazes de tal sucesso na aprendizagem profunda? [太音大全集題辭 Tàiyīn Dàquánjí Tící “A Grande Coleção dos Sons Supremos”.]

    Há também correlação com cinco virtudes antigas mencionadas em diversos tratados:

    Virtude (De 德, também "moralidade")
    Justiça (Yi 義 também "moralidade")
    Integridade (jiecao 節 操)
    Retidão (zheng 正 zheng, como em "正人心 "retificar a mente e coração).
    Ritualidade (禮 li Observância dos Ritos Confucionistas).


    Penso que não seria aplicável falar em "instituição da dádiva", pois a antiga cultura chinesa o vê como um instrumento dotado de poder simbólico, concreto, e inserido num conjunto de práticas sociais relativas às condutas desejáveis para a harmonização das relações humanas. Antes de tudo, é um instrumento ligado à formação do caráter humano (também musical). Não é objeto de culto, embora haja crenças supersticiosas que atribuem poderes mágicos a ele.

    André Ribeiro

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    Respostas
    1. Agradeço pela resposta! Foi clara e acredito que me estimulou a uma reflexão maior.

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