Raphaella Ânanda Sâmsara Maia Augusto de Souza Faria

 ESTÉTICA E JOGO DE PODER: O ARQUÉTIPO FEMININO EM TAMAMO-NO-MAE


Ao ler o conto de Tamamo-no-mae, percebemos a presença de certos padrões em seu comportamento, padrões esses que se remetem aos ideais de feminilidade presentes em diários de damas da corte do período Heian. Tendo como patrono o Imperador Toba, Tamamo se torna uma dama da corte favorecida por ele, e rapidamente se estabelece como a principal dama, com grande influência sobre o imperador e suas decisões.

Em sua tese de mestrado, Rebekah Hunter faz uma profunda análise das regras, normas sociais e de beleza que regem as mulheres durante o período Heian no Japão. Através dos diários das damas da corte, a autora relata o jogo político presente nesses escritos e no julgamento dos padrões de beleza estabelecidos por essas mesmas damas.

A forte presença do jogo de poder nas ações de Tamamo-no-mae, bem como seu status hierárquico e os relatos de sua extrema beleza e sabedoria, podem ser interpretados em referência ao jogo político e regras sociais vistos nos relatos das damas de corte analisados por Hunter através de seus diários. Sendo assim, investiguemos mais profundamente a presença de um possível arquétipo de feminilidade no conto.

 

Damas da Corte e seus Nikki

Durante todo o período feudal, em especial durante a era Heian, as damas de corte tinham sua funcionalidade em agir como intermediárias entre as mulheres de elite a quem serviam e os homens da corte. Portanto, inteligência, sabedoria, etiqueta e bons modos eram uma necessidade como parte de sua educação, bem como conhecimentos em literatura e de textos religiosos.

Ainda questionados quanto à sua real utilidade e utilização, os diários dessas damas, conhecidos como nikki, começam a reunir seus relatos e opiniões quanto aos acontecimentos da corte, ao comportamento de atendentes e outras damas, e poesias e descrições de natureza e beleza. Ao mesmo tempo, nesses diários, é possível notar o surgimento de padrões impostos a tais damas: como se vestir, tipos de maquiagem, o que seria vergonhoso ou virtuoso para uma dama da corte.

Quase que em oposição, os diários também relatam as opiniões dessas damas quanto à sua apresentação: “[...] o mérito das damas de companhia estava muito ligado ao seu conhecimento de etiqueta social e charme. [...] E, no entanto, os escritos dessas mulheres revelam que também era importante não chamar muita atenção para as próprias habilidades e talentos ou parecer deliberadamente manipuladora de seus patronos [...]” [Hunter, cap.2, 2014]. Portanto, devem ser belas, porém devem agir de forma a reunir patronos, necessários para seu envolvimento na corte. A manipulação desses patronos é algo aprovado e incentivado, não passando dos limites impostos social e politicamente.

 

Sei Shonagon

Dentre todas as damas analisadas por Hunter, a mais famosa e referenciada dentro dos estudos japoneses seria Sei Shonagon. Em seu “Livro do Travesseiro” – Makura no Soshi – suas fortes opiniões e inteligência, invejadas, aprovadas e repreendidas por tantas outras damas, apresentam uma visão única quanto ao período, os acontecimentos internos da corte e às vidas de seus integrantes. Sua preocupação com decoro e compostura, com a estética a ser apresentada, com a dicção e comportamento revelam um aspecto político da feminilidade como observado na época. Seus escritos podem ser interpretados como uma construção de um arquétipo de feminilidade para a era Heian.

Porém, Hunter faz também uma observação: “Sei Shōnagon parece ter se orgulhado de sua inteligência e sagacidade [...] e não tinha medo de dar voz aos seus próprios interesses.” [Hunter, cap.2, 2014]; algo que descontentava outras damas da corte. Em seus escritos, fica claro que ela se sente superior a outras damas, e mesmo outros homens de alta patente. Sua figura é relativamente contraditória, pois suas críticas a outras damas podem ser facilmente revertidas a si mesma. Uma mulher orgulhosa, inteligente e astuta, que nos aproxima de uma comparação com a figura de Tamamo-no-Mae.

 

Arquétipo de Feminilidade

Prosseguimos então para uma formulação mais direta desse possível arquétipo presente nos escritos das damas da corte. Inteligência, sabedoria, beleza, bons modos, decoro, compostura e visão política. Essas características eram esperadas de todas as mulheres que fossem parte da corte, em especial de mulheres da alta aristocracia, como imperatrizes, princesas e filhas de nobres, e de suas damas de companhia, as damas da corte.

Em constante oposição e contradição, a visão política era necessária para obter um cargo de maior poder, seja sobre outra figura de poder ou sobre as demais damas da corte. Para tanto, essas mulheres precisavam ser manipulativas, passar a imagem correta para obter o que desejavam. Mas exercendo grande cuidado, ou seriam vistas como ambiciosas em demasia, uma grande falha de caráter.

Também parte da construção deste possível arquétipo, os conceitos de visibilidade e não-visibilidade estão presentes nas normas que regem essas damas. A demonstração de poder presente no ato de não-visibilidade não é exclusiva à imperadores e imperatrizes: “[...] o controle da visibilidade estava diretamente ligado não só à riqueza material necessária para manter um espaço separado, mas também aos fundos para sustentar um séquito de atendentes para tornar tal vida possível. Muito mais visíveis, as ações dos atendentes exibiam o status das pessoas à quem atendiam” [Hunter, cap.4, 2014]. Entretanto, damas da corte de mais baixas hierarquias não poderiam se permitir a não-visibilidade constante. Quanto mais alto o nível hierárquico de uma mulher na corte, menos visível ela deve ser. A beleza de uma imperatriz é demonstrada através da beleza de suas damas de companhia e suas vestimentas. Quanto mais alta a qualidade do material escolhido, quanto menos visíveis e mais alto o grau de mistério quanto sua beleza, mais bela e poderosa seria a imperatriz. Sua beleza deve ser vista apenas em vislumbres e situações específicas, de forma controlada, com a finalidade de criar um ar de mistério e poder. Porém, esses conceitos criam uma dicotomia. Uma dama da corte, especificamente, também deve ser vista, ou sua presença deixa de ser importante e, com isso, seu jogo de poder se torna falho.

Portanto, conceitos de beleza e estética impecáveis, visibilidade controlada como demonstração de poder, educação, inteligência e sabedoria, mistério e manipulação são a base para um arquétipo de feminilidade baseado nas damas de corte durante o período Heian. Tendo alcançado uma definição mais clara, analisemos a presença deste arquétipo no conto de Tamamo-no-mae.

 

Tamamo-no-Mae
Tamamo-no-mae foi, de acordo com o conto presente no Otogi-zoshi, uma dama de corte que serviu ao imperador enclausurado Toba, durante o reinado do imperador Konoe. Sua extrema beleza e inteligência eram incomparáveis, e o conto narra como seu corpo exalava um aroma extremamente agradável e suas vestimentas permaneciam impecáveis durante todo o dia.

Tamamo possuía um conhecimento muito além de seus aparentes vinte anos de idade. Era capaz de reproduzir de memória trechos inteiros de anedotas budistas presentes em livros antigos, e respondia corretamente e de forma simples a qualquer pergunta a ela direcionada.

Ela era tida como a dama mais bela e inteligente de todo o país. Tão bela que ganhou o favor do imperador Toba, que a mantinha ao seu lado em todos os momentos, e a estimava como se fosse sua imperatriz. Seu nome vem do ocorrido durante uma apresentação de música e poesia: “O imperador a levou junto e eles se sentaram por trás das cortinas de bambu. Naquele exato momento, um vento forte soprou, apagando a chama das lanternas, e a sala mergulhou na escuridão. No entanto, em um instante, parecia haver luz emanando do corpo de Tamamo-no-mae. Surpresos, os honrados ministros olharam em volta e perceberam que a luz se derramava de dentro das cortinas de bambu que a cercavam. A luz era como o sol da manhã.” [Otogizoshi]. Portanto, deu-se seu nome como Tamamo-no-mae, a dama das jóias - que também se refere à origem chinesa do conto - por seu brilho.

Entretanto, o imperador adoeceu, e rumores começaram a surgir quanto ao motivo. O monge Abe-no-Yasunari fora contactado, e previu que algo de grande importância ocorreria ao imperador, aconselhando-o a rezar para ser poupado. Entretanto, nada parecia resolver ou ajudar, e Tamamo tomou para si as obrigações de cuidar do imperador.

Ao ser novamente chamado, Yasunari hesitou antes de anunciar que o mal que afetara o imperador era Tamamo-no-mae, revelando então sua natureza como uma kitsune. Ao ser ordenada a fazer oferendas aos deuses, por achar essa uma tarefa desprezível, teve de ser persuadida a realizá-la. Ao se cansar de tal farsa, Tamamo se vestiu com suas melhores roupas e, durante a cerimônia, desapareceu, provando a todos que Yasunari estava correto em suas afirmações.

O fim do conto apresenta uma grande batalha, seguida pela morte de Tamamo-no-mae, porém, o objetivo desta análise está alcançado. A partir dos relatos apresentados pelos diários das damas da corte, podemos perceber todas as semelhanças entre Tamamo e tantas outras, sendo ela também uma dama da corte. Mas como encaixar o arquétipo de feminilidade neste conto?

 

Jogos de Poder

Tamamo-no-mae é um conto de excessos. Sua beleza, inteligência, sabedoria e ardilosidade, todos esses traços em excesso, contam a história dos exageros aos quais as damas da corte devem exercer um firme controle. A beleza excessiva traz a inveja de outras damas, imperatrizes, princesas e mesmo outros homens, por inveja também ao poder que essa beleza demonstra. O mesmo é válido para todos os outros traços, e o fato de Tamamo não demonstrar grande humildade, nos remete ao que Hunter afirma sobre Sei Shonagon: seu orgulho quanto às suas qualidades.

A manipulação exercida sobre os patronos não deve exceder o aceitável pela sociedade de corte do Japão no período Heian. Portanto, certos traços, como orgulho, astúcia e lida política devem ser medidos e nunca ultrapassados, nunca se colocando acima de seu lugar na hierarquia.

O texto Tsuma Kagami, Mirror for Woman, de Muju Ichien, afirma que todas as mulheres possuem sete principais pecados, segundo os ensinamentos budistas chineses: “Em primeiro lugar, [...] elas não têm escrúpulos em despertar o desejo sexual nos homens. Em segundo lugar, sua disposição ciumenta nunca é ociosa. [...] Em terceiro lugar [...] uma disposição propensa à enganação [...] Em quarto lugar, negligenciando suas práticas religiosas [...] elas não pensam em nada além de sua aparência e desejam as atenções sensuais de outros. [...] Em quinto lugar, [...] muitas vezes elas levam o mal aos outros sem temer que estejam acumulando pecados para si mesmas. Em sexto lugar, queimando-se no fogo dos desejos, elas não têm vergonha [...] Em sétimo lugar, seus corpos estão para sempre imundos, com frequentes descargas menstruais.” [Muju Ichien, 1980]. Muitos desses pecados se encaixam na narrativa sobre Tamamo-no-mae, e servem como exemplos nos diários das damas da corte.

Entretanto, ao mesmo tempo que esses ‘pecados’ são algo a se manter distantes, eles são intrínsecos à sociedade de corte. Inveja, intriga e manipulação, além de presentes e pontos principais de diversos acontecimentos históricos, são também comportamentos levemente autorizados e incentivados. A existência dos jogos de poder depende da existência desses comportamentos, que, mesmo vistos como exclusivamente inerentes às mulheres, estão presentes em todos que fazem parte da corte.

Portanto, as damas de corte devem ser levemente manipuladoras, inteligentes, astutas, bem letradas e belas, para ganhar o favor de um patrono. A inveja de outras damas - e de outros patronos - incentiva os jogos de poder e alimenta a fome de poder de certas figuras. O excesso, entretanto, é a falha final de qualquer personagem, por esta ótica.

 

Performances de Feminilidade

A partir de todas as análises feitas até este ponto, percebemos os diferentes tipos de performance de feminilidade retratadas durante o período Heian. Em especial: “as implicações que essa estética tem com respeito à avaliação da posição das mulheres na sociedade.” [Hunter, introdução, 2014]. Os dois principais tipos seriam, com ênfase na intenção deste texto, a mulher correta e a mulher raposa. 

O tipo de performance exigida para ser considerada uma mulher correta, enquanto dama da corte, seria o exercício do controle. Atos comedidos, visibilidade controlada, demonstrações de qualidades de forma não excessiva, seguir limites de acordo com a hierarquia e posição social. Ela deve ser bela, inteligente, possuir astúcia para situações políticas, seguir padrões estéticos de acordo com sua função e exercer autocontrole. Já a mulher raposa, identificada em alguns textos e anedotas como kitsune-onna ou oni-onna - mulher-demônio - não se preocupa com os limites impostos. Ela é exigente, ambiciosa, orgulhosa de si mesma e de suas habilidades, sua manipulação ultrapassa os limites sociais, é mentirosa e possessiva. E, muitas vezes, como no conto de Tamamo-no-mae, sequer é humana, uma kitsune disfarçada de dama, sedenta por poder.

 

Conclusão
Anteriormente, em um outro artigo, cito a dualidade do ser raposa, sua representação e sua dualidade. Divino e demoníaco, masculino e feminino, real e fantástico, em diferentes culturas. Na cultura japonesa, a predominância da representação da raposa é feminina:  “[...] é um ser emocional de profunda sabedoria, porém igualmente astuta. Amoral por não compreender a noção de moral humana, é um ser dúbio, transitando entre o bem e o mal, entre crueldade, travessura e piedade, em comportamentos considerados então femininos.” [Sâmsara, pg. 409-413, 2017]. Uma distribuição mais equilibrada de contos em que ela é demoníaca ou divina, assim como uma terceira vertente em que ela é ambas as coisas ou nenhuma delas, apenas um agente do caos.

A associação da imagem da kitsune com a figura feminina evidencia a interpretação e a leitura de uma parte da sociedade por outra. O arquétipo de feminilidade não estaria completo sem seus contrapontos, sem certas contradições e exageros, sem a dualidade também do ser feminino. Ao completá-lo, conseguimos encaixá-lo sem grandes problemas no conto de Tamamo-no-mae, bem como, imagino, em diversos outros.

Talvez seja possível, mergulhando mais profundamente na análise da personagem histórica, até mesmo comparar a própria Sei Shonagon a um arquétipo de kitsune. Mas, neste caso, utilizando-a como a face principal das damas de corte do período Heian, as semelhanças com Tamamo-no-mae são bem destacadas. Ambas são mulheres fortes, orgulhosas de seus feitos e suas habilidades. Em fiel dualidade, Sei Shonagon é o exemplo a ser seguido, apesar de seu leve flerte com os limites, de acordo com as outras damas da corte, enquanto Tamamo-no-mae é o exemplo a ser evitado, um vislumbre do que acontece com e como é vista socialmente uma dama que ultrapassa seu posto dentro da hierarquia da corte japonesa.

Por fim, como muito bem descrito no conto, Tamamo-no-mae aparenta começar sua jornada na escala hierárquica da corte do imperador recluso Toba da mesma forma que Sei Shonagon e tantas outras damas. Entretanto, enquanto algumas se esforçam para se encaixar perfeitamente dentro do arquétipo de feminilidade criado por seus próprios diários, Tamamo se utiliza do arquétipo e o transforma, criando uma outra interpretação para a forma como certas mulheres são julgadas por seus atos e excessos.

Nem todas as mulheres, sejam elas damas da corte, damas de companhia, princesas ou imperatrizes, se encaixam perfeitamente dentro das expectativas da corte e da sociedade. O arquétipo aqui abordado representa a dualidade presente em todas essas mulheres. Afinal, definir limites de comportamento em uma sociedade patriarcal é delimitar a própria existência feminina em seu meio.

 

Referências
Raphaella Ânanda Sâmsara é graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO.


 Tamamo-no-mae. In: Enjoying Otogi Zoshi with the help of synopsis and illustrations. Online. Disponível em: <https://rmda.kulib.kyoto-u.ac.jp/en/item/rb00013524/explanation/otogi_09>. Acesso em: 19 de Julho de 2021.
HUNTER, Rebekah A. Aesthetics of womanhood in Heian Japan. University of Oregon, 2014.
KINCAID, Christopher. Come and sleep. The Folklore of the Japanese fox. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2016.
MUJU, Ichien. Mirror for Woman. Tsuma Kagami. In: Monumenta Nipponica, Spring, 1980, Vol. 35, No. 1 (Spring, 1980), pp. 51-75. Tokyo: Sophia University.
NOZAKI, Kiyoshi (ed.). Kitsune. Japan's fox of mystery, romance & humor. Tokyo: Hokuseido Press, 1961.
SÂMSARA, Raphaella Ânanda. Representações da raposa na literatura maravilhosa medieval: uma comparação entre o imaginário europeu e o japonês. In: Vários Orientes. Rio de Janeiro/União da Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017.
SÂMSARA, Raphaella Ânanda. Representações da raposa na literatura maravilhosa medieval: uma comparação entre o imaginário europeu e o japonês. In: Vários Orientes. Rio de Janeiro/União da Vitória; Edições Sobre Ontens/LAPHIS, 2017.

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